“Quando encontramos o nosso propósito, estamos salvos”

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Quem o afirma é o actual CEO da Sogrape, a famosa empresa de vinhos presente em mais de 120 países. Através de uma história contada na primeira pessoa, Fernando Guedes explicou, de forma honesta, os desafios que teve de ultrapassar quando assumiu a liderança da empresa, focando-se inicialmente na sistematização dos seus princípios e valores, os quais representam a sua identidade, e preparando-se depois para a orientar para o futuro. De uma empresa familiar, a Sogrape transformou-se, nos seus mais de 75 anos de história, numa “família alargada” onde todos os seus stakeholders têm lugar, onde se “mistura” sustentabilidade com responsabilidade social e onde a amizade se assume como o grande fio condutor do seu sucesso e inovação
POR HELENA OLIVEIRA

Fernando Guedes, membro da terceira geração da empresa familiar SOGRAPE, foi o orador convidado no mais recente almoço-debate promovido pela ACEGE – Associação Cristã de Empresários e Gestores e sob o lema “liderar para transformar”.

Neto do homem que em 1942 teve o sonho de dar a conhecer ao mundo os vinhos portugueses – começando pelo icónico Mateus Rosé, “ainda hoje o embaixador dos vinhos portugueses no mundo” e com presença comercial em mais de 120 países -, Fernando Guedes assumiu a liderança da empresa devido a “um acontecimento extraordinário e dramático”, contraindo um desafio para o qual, confessa, “não estava minimamente preparado”. E foi uma história na primeira pessoa que o actual CEO da Sogrape contou diante de uma plateia de gestores e empresários, substituindo o tema proposto por “liderar para mudar”, exactamente porque nos dias que correm “mudar não é uma opção, mas uma obrigatoriedade, porque se não mudarmos, ficamos para trás”.

[quote_center]Andar para a frente tem, antes de mais, a ver com aquilo que nos move, com os nossos princípios e valores, com aquilo que verdadeiramente nos une[/quote_center]

A história que Fernando Guedes partilhou com os presentes no almoço-debate começa no dia em que foi chamado ao escritório pelo seu irmão mais velho, Salvador, na altura o CEO da reconhecida empresa de vinhos, e quando este lhe confessou ter sido diagnosticado com uma doença neurológica degenerativa grave e de ser obrigado, num curto espaço de tempo, a deixar de contribuir para a gestão da empresa. Assim, e inesperadamente, tinha chegado “a vez” de Fernando Guedes assumir a liderança, um acontecimento que começou por lhe causar “muitas noites sem dormir, nervos, angústias e preocupações”, sentimentos normais quando nos deparamos com “tamanhas adversidades” e cuja primeira reacção é “fecharmo-nos em nós próprios” tal como a avestruz enterra a cabeça na areia. Todavia, cedo reconheceu também que esse era o “movimento errado” e que “andar para a frente tem, antes de mais, a ver com aquilo que nos move, com os nossos princípios e valores, com aquilo que verdadeiramente nos une, pois é isso que nos vai dar um caminho e a orientação necessária para o conseguirmos fazer”.

Porque interiorizou a premissa de que tinha uma missão a cumprir, Fernando Guedes começou por “sair para prender, ver o mundo e estudar”. Foi para o INSEAD para actualizar os seus conhecimentos – e perceber que nada sabia sobre liderança -, rodeou-se de uma boa equipa, algo fundamental “porque desenganem-se aqueles que acham que podem mudar o mundo sozinhos”, teve o apoio de alguns consultores e até de um coach, e compreendeu sobretudo que vivemos “num mundo tão complexo, que não o sabemos ler, que é volátil, incerto e sobretudo ambíguo, porque o que é verdade hoje, já não o é amanhã”. Em particular, porque “os princípios que achamos que os outros respeitam, já não são respeitados, sendo, portanto, muito mais complexo gerir e liderar nesta total adversidade”, o orador procurou, antes de mais, trabalhar o tema do “propósito”. Não porque a Sogrape não o conhecesse, mas “porque o quisemos sistematizar”, o qual se materializou num “cartão com oito princípios” – presentes no quotidiano de todos os que nela trabalham e que confere “a razão de existirmos, o que nos move e o que nos orienta”, declarou. A estes oito princípios – que são, sobretudo “valores de carácter” somam-se outros tantos, mas mais “empresariais e aspiracionais”, assentes num conjunto de crenças, que misturam o sonho – que sempre fez parte da história da empresa de vinhos – a perspectiva de longo prazo, as boas relações e a ideia de futuro, “de um futuro melhor”. Mas já lá iremos.

“O propósito da vida é encontrar o nosso propósito”

Fernando Guedes partilhou um exercício que, a seu ver, devia ser feito em todas as empresas e que tem como objectivo aferir os motivos que, na vida profissional, mas também na vida pessoal, nos fazem levantar da cama todos os dias. A ideia é: “se perguntarmos às nossas pessoas ‘o que é que fazem’, todas elas saberão responder; se lhes perguntarmos ‘como’, a resposta é mais difícil, mas também se chega lá; mas quando lhes perguntamos ‘por que é que o fazem, porque é que acordam e vão trabalhar motivados e participar num projecto que é comum’, são poucas as que sabem responder”, explica. Ou seja, encontrar o porquê do que se faz, o que verdadeiramente nos move, não é fácil, e foi isso que o actual CEO da Sogrape se propôs fazer.

[quote_center]A Sogrape é uma família alargada de pessoas diferentes, que se complementam, de culturas diferentes que não queremos aniquilar nem fundir, mas fazer coincidir e coexistir no seu melhor[/quote_center]

O cartão que consigo levou e que contém os valores que guiam a empresa é o resultado dessa busca. “O propósito da vida é encontrar o nosso propósito”, citou, explicando que os princípios elencados no cartão e que constituem o propósito da empresa que lidera não foram feitos por ele, nem por uma equipa, mas “por todas as pessoas que trabalham diariamente na Sogrape – que são muitas e em vários cantos do mundo – mas sobretudo por aquelas que desde o primeiro dia colaboraram, acreditaram e participaram neste projecto”. E como é que aqui se chegou? “Com processos de reflexão, em equipa e tendo em mente que tudo começa na definição do nosso carácter”, diz. Assim surgiram princípios simples, que assentam e começam nos “pilares sólidos” e que terminam em outros que são “mais aspiracionais e empresariais”, naqueles que provavelmente consideramos que temos, mas que exigem esforço para os alcançar”.

Enumerando alguns destes valores, Fernando Guedes começa pela “família”, não só porque “a Sogrape é uma empresa familiar” mas, muito mais do que isso, “é uma família alargada de pessoas”. “Pessoas diferentes que se complementam, culturas diferentes que não queremos aniquilar nem fundir, mas fazer coincidir e coexistir no seu melhor”, explicou, enumerando de seguida o bom senso – algo difícil de avaliar e “que falta em muitas empresas, na sociedade e até nas nossas vidas”, e que “não se define, mas entende-se”. Sobre o valor da confiança, entrelaçou-o igualmente com a família: “se numa família não existem laços de confiança, então essa família não existe”, sendo que este princípio caracteriza a Sogrape e todas a pessoas que nela trabalham, o mesmo acontecendo com a paixão e com o “ser desafiador” [do inglês, demanding], “pois qual é o pai ou mãe que não exige mais e melhor para os seus filhos?”, questionou.

Dos princípios familiares (ou de carácter) saltou para os “mais empresariais ou mais aspiracionais”, explicando que existe uma diferença entre “o que somos” e o “que acreditamos”. Sublinhando que “temos de ser uma empresa ágil, corajosa e inovadora” e que “este é o nosso carácter”, é também a partir de um sistema de “crenças” [beliefs], que a empresa se move. E sem os elencar a todos, existe um que lhe vem de imediato à memória: “o tempo vai passando, mas a Sogrape está para ficar. Não nos move o presente, não estamos agarrados ao passado, queremos sobretudo um futuro, um futuro melhor. E uma perspectiva de longo prazo, pois só assim se consegue criar relações, só assim se consegue criar uma empresa”, explicita. “Em qualquer empresa, e principalmente no negócio do vinho”, diz, em que uma vinha pode demorar décadas a produzir, “ se não temos uma visão de longo prazo, não temos nada”, aproveitando ainda para citar o Barão de Rothschild que afirmava que “no vinho tudo é fácil, só custam os primeiros 50 anos”.

Para o CEO da Sogrape, e nos “beliefs” da empresa, consta também a “boa relação e equilíbrio entre vida profissional e vida familiar”, como algo que a mesma defende e promove, ao que se junta um princípio deveras importante como é o do respeito. “O respeito pelas pessoas que connosco trabalham, o respeito pelas comunidades onde estamos inseridos – e são muitas, em Portugal e no mundo – e o respeito pela sociedade em geral”. Uma espécie de “mistura de sustentabilidade e responsabilidade social”, acrescenta ainda, explicando que ao juntar os princípios de carácter com os das crenças, se chega à identidade da Sogrape: “não há outra empresa igual. Há melhores, há piores, mas não igual. Isto somos nós. É a nossa essência, é a nossa identidade”, rematou.

“Primeiro fazemos amigos, depois vêm os negócios” ou a sograppiness

“Depois de sabermos como pessoas e como empresa o que somos – a nossa identidade -, então estamos mais fortes e sólidos para pensar no futuro”, assegurou também o gestor, afirmando que “tal como o sonho alimenta a vida, é o sonho também que alimenta a Sogrape”. E desde sempre. Começando pelo seu avô, em 1942, e mais de 75 anos passados, o seu sonho foi realizado. Mas para o mesmo contribuiu também o seu pai, que “sonhou ainda mais alto” e que da empresa que “era só a garrafa bojuda que toda a gente conhece – a do Mateus Rosé – teve o sonho de a transformar na líder dos vinhos em Portugal”. Da loucura em que acreditou o avô, também o pai lhe seguiu os passos, mesmo sem ter “um palmo de terra”, sem ter uma “única vinha”, obrigado a “construir tudo do zero”, “vinhas, adegas, equipas, marcas”, elencou. E foi preciso igualmente “saltar” para o vinho do Porto, “saltar” fronteiras e “produzir vinhos no Chile, na Nova Zelândia na Argentina, em Espanha”, “criar empresas de distribuição”. Ou seja o sonho e a loucura tornaram-se mais uma vez possíveis. “Porque houve um sonho e houve emoção e é a emoção que leva à razão” e “agora continuamos a sonhar ainda mais alto”, assegura.

De acordo com o gestor, o que sonham agora é serem admirados como a mais bem-sucedida empresa familiar de vinhos do mundo. E se tal ânsia pode ser considerada, e mais uma vez, uma loucura, Fernando Guedes não tem dúvidas de que a vai alcançar, “quando”, não sabe, mas “como” tem algumas ideias. Apontando mais uma vez para o cartão dos princípios que movem a empresa, o seu líder afirma que é ao espírito que vão buscar a sua energia, sendo que esse mesmo espírito se resume a uma palavra que só existe no léxico da sua empresa: sograppiness, a junção de felicidade com amizade, sentida pelas pessoas que lá trabalham e que consta em “mensagem escrita” pelo avô em 1942, que sempre afirmou que primeiro fazemos amigos, depois vêm os negócios”.

[quote_center]Depois de sabermos como pessoas e como empresa o que somos – a nossa identidade -, então estamos mais fortes e sólidos para pensar no futuro[/quote_center]

Dando o exemplo da festa de Natal, que começa com um jogo de futebol, ao que se segue uma missa, um almoço “bem regado” e depois um espectáculo de variedades, tudo feito pelos próprios empregados, “é a amizade e a felicidade que se celebra”, assegura, dando ainda o exemplo de antigos empregados da Sogrape que, mesmo estando já fora da empresa, se continuam a reunir nesta data – e já são mais de 350 -, sendo este o espírito que permite “fazer mais e melhor pela empresa”. O CEO recorda ainda que apesar de se falar muito da felicidade nas empresas, o conceito de “amizade” é mais raro, mas garante que é esta “que está também na base da família, família esta que, por sua vez, está na base de tudo o resto”.

Fernando Guedes não falou explicitamente de vinho, mas sim de “emoção”, pois é “esta emoção organizada, concertada e vivida entre todos que permite passar à acção”, estando consequentemente a dar resultados e a criar valor. Assim, diz, se perguntarem qual é o propósito da Sogrape, “podemos responder que é tudo isto, é passado, é presente, é futuro, é a emoção que nos vai conduzir à razão, é sermos activadores, criadores de amizade e tudo através dos nossos vinhos”. E nesta equação entram todos, sejam os empregados, os colaboradores, os fornecedores – e sobretudo os clientes -, ou seja, todos “os que queiram pertencer e relacionar-se com este mundo”. E, sublinha, “queremos ser admirados não pelo que fazemos, mas pelo que somos”.

Mudança incremental, transformacional e disruptiva

Para o líder da Sogrape, e visto que vivemos num mundo em constante mudança, esta tem de ter, nas empresas, “um bocadinho” de três características, ou seja, há que ser incremental, transformacional, mas também disruptiva”.

Recordando que, se por um lado o sector dos vinhos é dos mais tradicionais que existem, o mesmo é, por outro lado, também aquele que mais mudanças disruptivas precisa. Dando o exemplo de empresas de Silicon Valley que já produzem vinho a partir de uvas moleculares, o líder da Sogrape sublinha que “a mudança é uma inevitabilidade” e tem de ter a dose certa das características acima mencionadas que melhor se adeqúem a cada empresa e a cada sector, sendo que “não existem receitas”.

[quote_center]Queremos ser admirados não pelo que fazemos, mas pelo que somos[/quote_center]

Em jeito de balanço, e no final da sua apresentação, o CEO da internacionalizada empresa de vinhos confessou que também ele foi obrigado a mudar e a saber liderar a mudança, o que considera como um acto de grande complexidade. “Porque a mudança tem de ser um processo e, no meu caso, não a anunciei, mas necessitei dela e implementei-a”, afirma. Confessando que teve primeiro a necessidade de evangelizar a sua equipa, e de seguida toda a empresa, a sua primeira grande mudança foi ter percebido que era preciso “liderar-se a si próprio”, considerando este o maior ensinamento que lhe foi transmitido nos últimos anos.

Insistindo que no mundo de hoje não é possível controlar o que vai acontecer na próxima hora, seja na vida pessoal, seja na empresarial, afirma que o que lhe aconteceu “não foi mais do que assumir uma responsabilidade, que irei levar seguramente até onde puder”. E terminou a sua intervenção afirmando que “outros virão, eu sou um mero instrumento de passagem, de quem esteve antes de mim, de quem me entregou este testemunho e que outro irá receber no futuro”.