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Pedro Rocha e Melo em Faro “A liderança cristã deve ser chamada para estes tempos que vivemos”

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Pedro Rocha e Melo em Faro “A liderança cristã deve ser chamada para estes tempos que vivemos”

publicado originalmente no Correio de Domingo 6 de Outubro 2019

Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

Engenheiro mecânico de formação, embora nunca tenha exercido, Pedro Rocha e Melo, de 57 anos, esteve durante 15 anos ligado ao setor financeiro, trabalhando na banca de investimento, no mercado de capitais e na bolsa. Hoje, casado e pai de quatro filhos, é vice-presidente da Brisa e vice-presidente da ACEGE – Associação Cristã de Empresários e Gestores, tendo sido um dos fundadores do primeiro grupo “Cristo na Empresa”, do qual ainda é membro, criado em Portugal por esta organização. Ligado também ao Movimento de Schoenstatt, Pedro Rocha e Melo explica, em entrevista ao Folha do Domingo, como tem levado a cabo na Brisa o seu papel de líder empresarial cristão. Entrevista conduzida por Samuel Mendonça

Como é que se leva Cristo para a empresa e, concretamente, para a empresa que é a Brisa?

É sempre um desafio, um caminho. E a ideia da vocação tem a ver com isso. A vocação é um chamamento de Deus e nós somos chamados quando trabalhamos nas empresas para, nesse local onde exercemos a nossa profissão, sermos Cristo. A origem do nome “Cristo na Empresa” vem daí. No fundo, é responder ao desafio de fazer a vontade de Deus no nosso dia a dia. Esse é o grande desafio que temos. E fazer a vontade de Deus no nosso dia a dia significa sermos Cristo. Nós gostamos muito de desenvolver as três vertentes ligadas ao batismo: sermos Cristo como sacerdotes, profetas e reis. Nas empresas isto aplica-se muito bem. Ser sacerdote é oferecer a nossa vida na relação com os outros, com todas as pessoas com quem trabalhamos, com fornecedores, com clientes. Ser profeta é dar testemunho de Cristo. E ser rei é nas decisões, tomando as decisões com Deus e colocando a dignidade da pessoa sempre em primeiro lugar. Este é o desafio que temos.

Mas calculo que não seja fácil, até porque o meio empresarial é um meio de alta competitividade onde também a questão do lucro está sempre muito presente nesse contexto que é o do mundo.

Não é fácil. Eu iniciei a minha vida profissional na banca de investimento. Trabalhava em mercado de capitais e vivia, de certa forma, a vida dividida. Na minha vida familiar e ao domingo tinha determinadas ideias, mas depois tinha dificuldade em aplicá-las na minha atividade profissional concreta. Esse é o grande desafio. Aquilo que temos de procurar fazer é seguir o que a nossa fé nos diz. E a Igreja tem um tesouro extraordinário que é a Doutrina Social da Igreja. Quando o descobri, tentei ser mais coerente.
Faço parte do primeiro grupo “Cristo na Empresa” e a ideia [da sua criação] foi precisamente essa: aprofundar a Doutrina Social da Igreja e tentar perceber em concreto como é que, em conjunto, a poderíamos aplicar dentro das empresas. Isto de trabalharmos em comunidade também é muito cristão. Hoje em dia temos mais 30 grupos [“Cristo na Empresa”] com mais de 300 pessoas pelo país todo.
E a Doutrina Social da Igreja dá-nos muitas respostas. Temos de deixar ser interpelados. O papa Francisco tem uma designação engraçada. Diz que os líderes empresariais podem ter uma vocação nobre e depois põe a ressalva: desde que se deixem interpelar por uma visão mais alargada de vida. E é precisamente isso. O desafio é procurarmos aplicar a Doutrina Social da Igreja e os seus ensinamentos no concreto do nosso dia a dia.

E isso visa colocar sempre o homem no centro e não um outro qualquer valor?

A dignidade da pessoa tem que estar sempre no centro e, em todas as decisões, em primeiro lugar.

Acha, portanto, que é esse o objetivo da empresa?

É. Isso ajudou-me muito em muitas decisões e muitos dilemas que tive. Se a dignidade da pessoa tem que estar em primeiro lugar, então o caminho só pode ser este. E a verdade é que se vão encontrando soluções. Tive várias situações em que me fizeram determinadas recomendações e havia muita gente a dizer-me para seguir determinado caminho e quando punha a dignidade da pessoa em primeiro lugar percebia que o caminho tinha de ser outro. E encontrámos soluções.

Uma vez que fala de vocação, para se ser líder empresarial é preciso então uma vocação?

A vocação é um chamamento de Deus. Há muitas pessoas que têm responsabilidades. Nas empresas, as responsabilidades e as lideranças fazem-se a muitos níveis. Nas grandes empresas há muitos líderes, projetos, equipas, direções, departamentos, responsáveis. Há muita gente responsável por outras pessoas. E essas pessoas em concreto, quando têm responsabilidade por outros, é uma vocação, é um chamamento. Têm que entender isso dessa forma.
Mas o chamamento que Deus nos faz, faz em várias facetas da vida. Por exemplo, no casamento. Há pessoas que foram chamadas para essa vocação e têm que a exercer nessa perspetiva. Esse é o desafio. É perceber, em cada momento, que se estou aqui, se me são dadas estas responsabilidades, o que é que Deus quer de mim, o que é que quer que eu faça.

E há muitos líderes empresariais que não têm vocação para sê-lo?

Não serei a melhor pessoa para responder a isso. Há diferentes perspetivas. Há muitos líderes empresariais que não são crentes, mas o meu ponto de partida é o de alguém que crê. Para quem não é crente imagino que seja mais difícil.

Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

“A liderança cristã é uma liderança que, em primeiro lugar, se entende como serviço aos outros

E qual é o papel do líder empresarial cristão?

O tema da liderança é um tema que é crucial. E você também vê seguramente em muitas situações líderes muito diferentes, com atitudes muito diferentes. Eu acho que a liderança cristã é uma liderança que deve ser muito chamada para estes tempos atuais que vivemos. A liderança cristã é uma liderança que, em primeiro lugar, se entende como serviço aos outros. Este é logo um ponto de partida que é diferente. Para mim, o líder é aquele que consegue inspirar os outros a mobilizarem a sua liberdade para se comprometerem. Muitas vezes não se entende bem para que é que serve a nossa liberdade. O que queremos é que as pessoas tragam o seu melhor, aquilo que é a sua originalidade para dentro das empresas. E o líder é aquele que consegue inspirar as pessoas para se comprometerem efetivamente nisso.
Na Brisa temos um programa de voluntariado muito grande. Eu fui um dos grandes impulsionadores desse programa e também houve pessoas que não compreenderam isso muito bem. Aquilo que descobrimos nas ações de voluntariado é o entusiasmo, a generosidade, a criatividade, a originalidade, o sentido de humor. Dimensões que, se calhar, as pessoas não estão a levar para a empresa e é aí que entra a liderança cristã. Liderar com respeito é cativar, é inspirar, como Deus faz connosco.

A Brisa apoia diversos programas de voluntariado de ajuda às comunidades. Que projetos são esses?

Temos vários projetos. Vou contar-lhe um engraçado que até provocou um dilema. Um dia apareceu-me lá na Brisa o líder da Refood (projeto que combate o desperdício alimentar e a fome) a explicar que queriam abrir o centro de São Domingos de Rana, mas que não tinham local. No campus da Brisa temos vários edifícios e vários espaços e disse-lhe arranjaríamos ali uma solução e pus um grupo de pessoas da empresa a tratar do tema. Quando este surgiu como proposta para se tomar uma decisão, havia duas alternativas. Uma era instalar o centro da Refood dentro da Brisa – coisa que não tinha acontecido até então e continua a não acontecer, pois, para além da Brisa, não há nenhum centro da Refood dentro de uma empresa – e outra era pagar à Refood para alugar um espaço no centro de São Domingos de Rana. Os simpatizantes desta última argumentavam que não devíamos ter pessoas a entrar dentro do nosso campus por razões de segurança e de logística e eu argumentei exatamente ao contrário: é precisamente por isso que temos de ter o centro da Refood dentro da Brisa, porque queremos abrir-nos à comunidade, queremos saber quem são essas pessoas.

E que avaliação é que faz dessa experiência?

Muito positiva, extraordinária. Houve uma adesão enorme de muitos colaboradores da Brisa que trabalham voluntariamente no centro da Refood. Portanto, o facto de o centro ser ali, para as pessoas da Brisa, facilita. Trata-se de uma zona muito necessitada e tem tido um sucesso extraordinário.

E na área do voluntariado esse é o principal projeto?

Não. Trabalhamos também no Centro Paroquial da Parede, em Carcavelos, e também numa zona do concelho de Cascais que é a Galiza em que apoiamos um projeto muito engraçado que é a escolinha de râguebi. A Galiza é um bairro que teve muitos problemas de droga e, através desse projeto, conseguimos mobilizar a juventude local e provocar uma integração.

Mas o apoio da Brisa a esses projetos estabelece-se a que nível?

Hoje em dia há, cada vez mais, entidades que vêm ter connosco e nós detetamos oportunidades. Os projetos de voluntariado são exigentes. Apesar de se falar em voluntariado tem que haver compromisso, continuidade. Nós trabalhamos com as entidades responsáveis desses projetos combinando uma determinada forma de cooperação e depois propomos isso aos colaboradores da Brisa que, voluntariamente, aderem ou não. Cada um tem a sua originalidade. Uns querem dar um pouco do seu know how técnico, financeiro ou na área da advocacia, outros querem ser professores e dar explicações a crianças, outros querem participar nas visitas a velhinhos.

“se conseguirmos que as pessoas estejam mais motivadas, elas trabalham melhor

Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

A ACEGE tem sido uma voz na defesa do equilíbrio entre a vida profissional e a familiar. Como é que se concilia isso com a questão, sempre em cima da mesa, do aumento da produtividade para sermos mais competitivos?

Essa é uma muito boa pergunta e, inclusivamente, a forma como a colocou já houve pessoas dentro da Brisa que a formularam também nesses termos, pondo a pergunta desta forma: «Mas vocês querem que sejamos mais eficientes ou que façamos a conciliação família-trabalho?».
O que acontece é que se conseguirmos que as pessoas estejam mais motivadas, elas trabalham melhor. Se as pessoas estiverem felizes – porque percebem que a empresa os respeita, respeita os seus horários, as suas necessidades de acompanhar os seus filhos, as suas necessidades de acompanhar os seus pais –, se as pessoas compreendem que a empresa os respeita e os aceita, – não só como pessoas, mas como pessoas que estão integradas numa família num determinado contexto –, elas reagem de uma forma muito positiva. Estão mais empenhadas e são mais produtivas. Isso cria uma cultura que tem efeitos que são muito positivos também em termos de produtividade.
Na Brisa temos elaboração contínua com trabalhos por turnos. Portanto, quando uma pessoa falta, as outras têm que mudar a sua vida também. Isso ao princípio custa, mas depois, quando as pessoas percebem o importante que isso é, cria laços, cria vínculos entre elas que as tornam, como equipas, mais produtivas.
E temos feito caminho neste domínio por causa da flexibilidade dos horários de trabalho. Damos flexibilidade de horários de trabalho, mas têm de ser as equipas a definir qual é o seu.

Há, então, uma certa autonomia?

Exatamente. Tem a ver com este tema de liderar com respeito e com o princípio da subsidiariedade. O princípio da subsidiariedade, que é um princípio da Doutrina Social da Igreja, é a ideia de que se tem de dar mais autonomia às pessoas. Têm de ter mais poder delegado, têm de tomar as decisões. Normalmente, até estão mais perto dos problemas e, portanto, são as pessoas mais capacitadas para os resolver. E as chefias têm que estar numa atitude de subsídio, de ajuda. Têm que estar quando é preciso ajudar as pessoas. A autonomia é fundamental para a responsabilização e para a motivação.

E para além de ser uma “Empresa Familiarmente Responsável”, a Brisa também é ambientalmente responsável?

Sim, desde sempre. Ainda antes de ser uma “Empresa Familiarmente Responsável”, a Brisa já era uma empresa ambientalmente muito consciente porque sempre tivemos a noção de que a construção de uma autoestrada tem um impacto enorme no ambiente, nas comunidades. Rasgamos montes e vales, separamos, às vezes, comunidades e temos a noção de que tem que haver contrapartidas. Temos de fazer qualquer coisa para repor o equilíbrio, quer seja ambientalmente, quer seja comunitariamente, quer seja criando novas formas de acessos, quer seja no plantio de árvores como o de 5000 sobreiros que realizámos ou criando acessos para os animais passarem debaixo das autoestradas. Neste âmbito, trabalhamos também com a universidade e temos câmaras para perceber quais são os animais que passam e onde é que circulam, o que permite fazer uma monitorização dessa vida animal que é muito interessante em termos de investigação.
Temos essas preocupações muito presentes.

A Brisa tem ainda uma plataforma de partilha de boleias. A redução das emissões de carbono tem sido também uma preocupação?

Sim, a plataforma de boleias tem exatamente esse objetivo. Está a ser proposta nas universidades exatamente com esse propósito.

E como tem sido a aceitação desse projeto?

Enorme. No caso da Universidade Nova, que tem um novo campus em Carcavelos, perto da Brisa, temos já cerca de 600 alunos aderentes que utilizam a plataforma para se deslocarem em Lisboa.