Monsenhor João Evangelista – 1924-2017

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Laudatio de Monsenhor João Evangelista por Padre João Seabra – Cónego da Sé Patriarcal

Começo por agrade­cer ao Instituto de Estudos Políticos ter-me convidado para fazer a lauda- tio de Monsenhor João Evangelista Ribeiro Jorge, neste dia em que lhe é entregue, em tão ilustre companhia, o Faith and Liberty Life Tribute. Ligam-me a Mons. João Evangelista laços an­tigos de amizade e admiração, pelo que cumprir a missão que me foi entregue não é apenas uma honra, mas também uma singular alegria.

Monsenhor João Evangelista é uma figura de primeiro plano da Igreja por­tuguesa. Como pároco da Sé Velha de Coimbra impôs-se como figura da cul­tura, pelos restauros notáveis, as publi­cações de alto nível científico e artístico sobre esse monumento incontornável, e pela organização de colóquios e en­contros de estudo. Mas não é desses as­pectos da sua actividade, ou da sua vida de pastor, que quero falar hoje, mas da sua importância e influência no meio dos empresários católicos.

O Padre João Evangelista teria 25 anos, pouco mais de dois anos de or­denação como sacerdote da diocese de Coimbra, e era capelão do Convento das Carmelitas Descalças onde vivia então a Irmã Lúcia, quando se encontrou com o Eng. José Horácio de Moura. Nesse ano de 1949 voltava ele a Portugal, depois do doutoramento na Suíça, com a consci­ência de ter sido mandatado pelo Papa Pio XII para fundar uma Associação de Patrões Católicos. Noutro tempo e lugar haverá que fazer a biografia de Horácio de Moura: hoje basta-nos citar uma frase desse homem, que fundou e dirigiu durante anos a UCIDT, União Católica de Indus­triais e Dirigentes do Trabalho, antecesso­ra da ACEGE: em 1962, no Discurso de encerramento do Io simpósio da UCIDT, Horácio de Moura dirá que João Evan­gelista é “o padre a quem devo tudo de bom que fiz na minha vida”.

Quem é esse jovem sacerdote que, encontrando a generosidade de um leigo católico empenhado na dinamização do patronato na causa da Doutrina Social da Igreja, o soube acompanhar com clarividência de governo e profundidade doutrinal, a ponto de merecer o juízo que citámos? A diocese de Coimbra, que o formara para o sacerdócio nos seus seminários, tinha uma tradição de alta formação intelectual do seu clero, e destacava-se no panorama da Igreja portuguesa, com algumas outras, pela atenção dada à Doutrina Social da Igreja. O certo é que o encontro do jovem sacerdote com Horácio de Moura determinaria a forma da sua vocação sacerdotal.

À roda de Horácio de Moura e do Padre João Evangelista se constituiu o primeiro núcleo da UCIDT, aprovado provisoriamente em 1952 pelo bispo e Coimbra como movimento católico diocesano. Em 1952, no Santuário e Fátima, consagrou-se o movimento Nossa senhora. Em 1953 organizou o primeiro Encontro Luso-espanhol de patrões Católicos, e o sucesso da iniciativa e a pública aprovação da Santa Sé impuseram a UCIDT como uma realida­de incontornável da Igreja portuguesa. Os encontros luso-espanhóis continua­ram regularmente até 1958, alguma vez com o impulso e a presença do Bispo do Porto D. António Ferreira Gomes, e no confinado espaço empresarial portu­guês, limitado na actuação e na menta­lidade pelo condicionamento industrial e pela estrutura corporativa, abriram perspectivas de amplo respiro e propu­seram com exemplos de além-frontei­ras o tema da responsabilidade social do empresário. Os primeiros anos da UCIDT foram intensos. Horácio de Moura definia a associação como um “movi­mento social de empresários cristãos, uma força dinâmica ao serviço da justi­ça económica e social e da ordem cristã da sociedade, uma associação que pre­tende ser uma presença moral na socie­dade”. Desde o início (Janeiro de 1954) a UCIDT filiou-se na UNIAPAC, a união internacional das associações congé­neres. O primeiro Encontro Nacional da UCIDT, com industriais de Coimbra, Aveiro e Porto, teve lugar em Fátima a 16 de Outubro de 1955. Ao mesmo tem­po tentava-se a aprovação do movimen­to a nível nacional.

O apostolado dos leigos estava, na década de cinquenta, confiado à Acção Católica, que o Papa Pio XI fundara em 1928, e o Cardeal Cerejeira lançara em Portugal em 1931. Depois de vinte anos de grande entusiasmo e empenhamento, contava com cerca de cem mil membros. Estruturava-se em movimentos de adultos, as “Ligas”, e de jovens, as “Juventudes”, masculinos e femininos, com mandato para evangelizar cinco meios sociais diferentes, agrário, esco­lar, independente, operário e univer­sitário. A UCIDT, como associação de patrões católicos, deveria integrar-se a nível nacional e diocesano na LIC ou na LUC. De 1953 a 1959, data da aprovação dos seus estatutos nacionais pelo Cardeal Cerejeira, a nascente UCIDT portuguesa definiu a sua organização face à estru­tura, totalizante e obrigatória, da Acção Católica, procurando uma autonomia e um espaço de especificidade que manti­vesse a sua natureza de movimento so­cial de empresários cristãos. Nesse pro­cesso foi fundamental o papel do Padre João Evangelista, dialogando persisten­temente com a autoridade da Igreja em busca de uma solução que potenciasse, em vez de afunilar, o âmbito de actuação da nova associação. Como ele próprio diz, nos cinquenta anos da UCIDT: “duas ideias-força mantiveram a UCIDT fiel à sua identidade: ser um movimento So­cial Cristão para empresários e gestores e atender à realidade da Empresa como cadinho de inovações e de saber prático numa economia concorrencial.”

Nos quinze anos seguintes, a UCIDT estendeu-se a Lisboa e ao resto do país, atraiu alguns dos empresários mais im­portantes da vida económica nacional, organizou Simpósios e Jornadas com co­municações de alto nível e publicação de conclusões de grande relevo. Em todos esses encontros se sente a presença do Padre João Evangelista, incansável pro­motor, mestre e divulgador da Doutrina Social da Igreja, apoio discreto da res­ponsabilidade dos leigos e garantia per­manente da fidelidade e união à Igreja da associação dos empresários católicos. Em 1966, numa audiência concedida à UCIDT portuguesa, quando era presi­dente Simões de Almeida, o Papa Paulo VI confirmou com apostólica autoridade a linha que Monsenhor João Evangelista imprimira ao movimento: “a Igreja es­pera dos chefes de empresa cristãos, en­tre tantas qualidades que poderia enun­ciar, três que incluem mais ou menos as outras: honestidade, competência e sentido social (…)”. E um último apelo: “Uma recomendação, que condiciona talvez o êxito de todas as outras: sede unidos. Unidos como cristãos, chefes de empresas (…) unidos sobretudo à Igreja, sabereis acolher todas as suas directivas em matéria social e procurareis ser os primeiros a pô-las em prática.”

Ao mesmo tempo a UCIDT envolveu- se na promoção da justiça social, para além do estrito âmbito da empresa. Es­pecialmente original foi o movimento de autoconstrução, iniciativa de grande envergadura provocada pelo gravís­simo problema habitacional dos mais pobres nas décadas de 1960 e 70, com a construção de mais de 600 habitações, e potenciando legislação que permitiu replicar o modelo de autoconstrução em vários pontos do país; ou a criação em Coimbra do COC, Centro Operário Católico, que procurou respostas aos problemas dos operários, contrapon­do à luta de classes a proposta cristã da concertação e do diálogo na busca de uma sociedade mais justa.

Se Monsenhor João Evangelista ti­vesse acompanhado a história da UCIDT de 1949 a 1974, isso seria suficiente para lhe merecer a gratidão da Igreja e do país e o prémio que hoje recebe. Mas coube-lhe enfrentar a Revolução, com a violência pessoal e patrimonial exerci­da sobre os empresários, com os sócios da UCIDT presos, exilados, espoliados, saneados, a sede assaltada, os arquivos sequestrados e usados para a persegui­ção política. Nesses anos Monsenhor João Evangelista manteve a esperança, e o mínimo de estrutura que foi pos­sível, com Pedro Teixeira Duarte pri­meiro, António Mardel Correia depois: passado o temporal maior, recomeçou, quase do princípio, a restabelecer entre os empresários católicos redes de ami­zade e colaboração.

Não é demais sublinhar que a Revo­lução não agiu apenas exteriormente sobre as condições de vida e de trabalho dos empresários, mudou também ati­tudes interiores. A desilusão provocada pelas ocupações, saneamentos, prisões sem razão de ser, por fim as nacionalizações, em homens que durante vinte anos se tinham esforçado por aplicar a Doutrina Social da Igreja nas suas em­presas e na sociedade, criou em alguns uma desafeição por qualquer ideia de responsabilidade social ou cívica, uma sensação de não ter valido a pena, e uma atracção por concepções pura­mente liberais. À ideia de Milton Friedman de que “a responsabilidade social da empresa é ter lucro”, dominante nos meios empresariais que se reconstituí­ram depois da Revolução de Abril, con­trapunha-se, no ambiente católico dominante, uma leitura da Doutrina Social da Igreja de pendor socialista, quan­do não obreirista: não é por acaso que muitos dos dirigentes da Acção Católica dos anos 60 e 70 encontraram guarida nos partidos de esquerda e extrema-esquerda. É neste contexto, de leitura socialista da Doutrina Social da Igreja e de uma certa aversão do patronato reconstituído pela ideia de responsabili­dade social, que Monsenhor João Evan­gelista se lançou a traduzir e editar, já nos anos 80, O Espírito do Capitalismo Democrático de Michael Novak. Nestes nossos tempos de debate económico quotidiano pós-comunista, onde o mais de esquerda que se consegue é ser keynesiano, não nos conseguimos já lem­brar do impacto que o livro de Novak teve nos nossos ambientes empresariais católicos, libertando a reflexão sobre a Doutrina Social da Igreja do espartilho esquerdista em que a tinham aprisio­nado. Também nesses anos Monsenhor João Evangelista foi convidado a leccionar no Curso de Gestão da Universidade Católica a cadeira de Ética Empresarial. O seu contacto com as jovens gerações de futuros gestores foi mais um contri­buto valioso para a presença cristã no meio empresarial.

Monsenhor João Evangelista assistiu ao renascimento da UCIDT, à passagem de testemunho para João Alberto Pinto Basto, grande promotor da expansão e desenvolvimento da associação, acom­panhou a mudança do nome (que lhe era tão justamente querido) para o actual de Associação Cristã de Empresá­rios e Gestores de Empresa, e entregou a assistência espiritual ao Padre Mário Rui Pedras, seu sucessor. Depois de cinquenta anos de serviço à evangeliza­ção e ao desenvolvimento da consciên­cia social dos empresários e gestores, a grandeza do homem que hoje homena­geamos mostra-se também na simpli­cidade desta passagem de testemunho.

Renovo o meu agradecimento ao Instituto de Estudos Políticos e ao seu Director, Prof. João Carlos Espada, pela oportunidade que me concederam de me associar à homenagem pública que quiseram prestar a Monsenhor João Evangelista Ribeiro Jorge.

in Nova Cidadania 69, Outono – Inverno 2012