“Existe, em Portugal, uma cultura enraizada de deficiência e fragilidade institucional”

Maria Lúcia Amaral foi a mais recente oradora no ciclo de conferências da ACEGE, subordinado ao tema “Transformar a realidade para enfrentar os desafios futuros de Portugal”. Para a Provedora de Justiça, “os serviços públicos que funcionam mal e uma administração do Estado que é má, não gera tranquilidade, não fomenta a prosperidade, não contribui para a justiça, não realiza o equilíbrio, não integra e, sobretudo, faz pior a quem é mais frágil” POR HELENA OLIVEIRA

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A Provedora de Justiça começou por distinguir dois objectivos da sua apresentação: o de estar habilitada a falar sobre a realidade que, na sua posição ou “da janela do meu quarto”, lhe é exposta e dedicar-se depois a comentar o momento em que vivemos, “que é de grande viragem para o nosso país também”. De acordo com a sua visão, há que perceber “o que queremos enquanto sociedade”, ou seja, o que é que está mal e que país que vamos deixar às gerações futuras e “como devemos cumprir a nossa obrigação de fazer tudo para Portugal ser um país habitável, um país melhor”.

Desta forma, Maria Lúcia Amaral invocou a sua experiência para opinar sobre o funcionamento do Estado português, tanto a partir de uma perspectiva teórica, quer prática.

Como afirma, “apreendi teoricamente categorias de raciocínio, abstractas e fundamentais, que me permitiram compreender não só o que somos enquanto colectividade estadual, como também e através de uma perspectiva histórica, quais são as declinações portuguesas no que a esta matéria diz respeito”. Recordando que na sua vida teve a possibilidade e a felicidade de completar a sua formação teórica, enquanto professora universitária, com uma experiência prática, na medida em que foi membro do Tribunal Constitucional, enquanto Provedora de Justiça tem agora uma experiência que é externa, mas que lhe confere uma visão directa para a outra função do Estado que é a de administrar.

E, como reforça, “estou habilitada a falar sobre o Estado português sobretudo devido à minha experiência nas duas funções de execução que o Estado tem: a de julgar e a de administrar”, sublinhando desde já que é na execução com efeitos directos na vida das pessoas que as políticas públicas e as organizações mais falham, causando por isso muitos prejuízos.

Acrescentando que a dimensão da execução é pequena, escondida e pouco falada, e tendo em conta que iniciou recentemente o seu segundo mandato, a responsável pela Provedoria de Justiça afirma ter uma visão geral e rica do que é a Administração Pública em Portugal.

Maria Lúcia Amaral começou por explicar que a função de Provedor de Justiça tem homólogos e parceiros em muitos países do mundo, principalmente naqueles que são cultural e civilizacionalmente mais próximos de Portugal, e que em linguagem internacional se usa, para esta função, a palavra ombundsman, termo sueco que foi dado à primeira instituição histórica deste tipo que nasceu exactamente na Suécia. Como declara, em todos os países estas instituições são do Estado e têm exactamente as mesmas funções – ou seja, receber queixas relativamente ao mau funcionamento dos serviços públicos que sejam lesivos dos direitos dos cidadãos. “A fórmula que o Direito faz desta função é apreciar queixas dos cidadãos por acções e omissões lesivas de direitos”, diz, sendo um serviço sem intermediação de advogados, gratuito e universal e que tem como base duas características.

Em primeiro lugar, tentar procurar uma solução para o caso concreto que lhe foi apresentado e tentar minorar, evitar ou recompensar a lesão causada e, em segundo, recomendar aos poderes públicos uma outra actuação no sentido do melhor cumprimento dos serviços e da boa administração. Uma outra característica que a Provedoria de Justiça em Portugal tem em comum com os demais países assenta no facto “de não poderem nada”, ou seja, devem ser rigorosamente independentes dos poderes do Estado, do poder executivo, do poder legislativo, mas não têm poder coercitivo próprio, o que é denominado em Direito como instituições de soft-law. A principal diferença de Portugal relativamente a outros países – de que é exemplo o Reino Unido que tem provedores sectoriais para os diferentes sectores da administração com um ombunsdsman muito eficaz para o sistema nacional de saúde – é que existe um Provedor só para todo o território nacional e para todas as matérias.

Deste modo não é difícil imaginar a vastidão e a diversidade de assuntos que chegam à Provedoria. Maria Lúcia Amaral contou à audiência que só no ano de 2021 foram recebidas mais de 12 mil queixas, as quais tentaram resolver ou “dar como iniciadas” e elencou o teor de algumas: “desde questões de trabalhadores do Estado que estavam zangados com concursos irregularmente feitos; até problemas que os portugueses têm com a Autoridade Tributária; passando por atrasos no diferimento de pensões de velhice; incluindo problemas de ordenamento do território e de urbanismo a cargo das câmaras municipais; passando por queixas de reclusos em estabelecimentos prisionais ou questões de acesso à habitação social, a juntar a algo que a incomoda particularmente, que são as queixas de imigrantes,” de gente que se encontrava já sob as nossas telhas e que vive num limbo total de desprotecção por não terem nem autorização de residência, nem renovação de autorização de residência”, entre muitas outras.

Assim, e reiterando que quem trabalha nesta instituição do Estado tem um amplo conhecimento do que é a inexecução neste domínio, do que é a administração pública, do que são os serviços públicos, a Provedora sublinhou que “a visão que tenho desta realidade não é tranquilizadora”. Como assegura, uma coisa é certa: “serviços públicos que funcionam mal e uma administração do Estado que é má, não gera tranquilidade, não fomenta a prosperidade, não contribui para a justiça, não realiza o equilíbrio, não integra e sobretudo faz pior a quem é mais frágil”.

Por que motivo somos deficientes neste domínio?

Para Maria Lúcia Amaral os motivos por excelência que explicam a deficiência nos serviços públicos são perenes, no sentido de estarem culturalmente enraizados, e elege três factores que se encontram na raiz do prejuízo que afecta todos e que explicam a má administração.

Afirmando que o primeiro problema está relacionado com a cultura política e com os hábitos dos decisores políticos em Portugal, de acordo com as palavras da Provedora “nós temos o hábito de tomar decisões sem termos em linha de conta o quanto é que elas vão custar na sua execução, o que não significa um custo económico, mas um prognóstico de saber quem vai executar a decisão que foi tomada, se pode executá-la, quando tempo demora a executar, que eficiência pode ter, etc..”. Como também refere, em muitos países, particularmente nos países nórdicos e também no Reino Unido, “as políticas públicas quando são desenhadas e quando se toma em relação às mesmas decisões importantes assentam na prognose favorável que se faz da sua execução e da possibilidade da sua execução”. O que não acontece em Portugal, que tem o hábito contrário culturalmente enraizado, ou seja, “uma coisa é decidir, deliberar, definir as políticas, desenhar os quadros, mas quando chega à hora da execução, não existem estudos que a suportem”, afirma. O que é um problema de cultura política.

Já o segundo factor, que a Provedora considera muito nefasto e também sistémico, é a cultura não só dos decisores políticos, mas também dos dirigentes da administração. “É uma incapacidade, uma deficiência das actividades de planear, programar, ver a longo prazo, dirigir os serviços de acordo com uma racionalidade de programa e de plano”, enumera. E dirigindo-se aos gestores da plateia que “fazem isto todos os dias”, como explicar que o Estado, que tem a responsabilidade de dirigir serviços e de definir a sua forma de actuação, não o faz? Entre muitas razões, sobressaem as debilidades de liderança que estas pessoas-chave, os dirigentes, têm, ou a falta de uma legitimação suficiente para o fazer.

Por último, o terceiro factor que considera terrível e que é causa de muito mal e prejuízo, é o que se pode chamar de “efeito de silo”. Apesar de termos um Estado com administração plural, o problema é que “temos uma administração, e um Estado plurium [do latim muitos], fragmentado e fragmentário, em que a mesma decisão implica na sua execução muitas entidades que entre si não falam, não partilham informação, não colaboram, não fixam uma agenda comum”. Desta forma, o resultado é que para um processo ser resolvido e chegar a uma pessoa em concreto, “e que supostamente iria demorar x tempo, acaba, na realidade, por demorar x+y+z, sem esquecer decisões intercalares que são contraditórias”, sublinha. Ora, acrescenta, para a vida das pessoas esta é uma situação infernal. E, a seu ver, esta fragmentação, a par da incapacidade de partilha e de acção conjunta devem ser atribuídas a uma cultura enraizada de deficiência e de fragilidade institucional.

Como também salienta, “nós temos instituições frágeis, fracas, pouco sólidas, sendo que as pessoas não são ‘socializadas’, não aprendem a ter uma cultura verdadeira de serviço, de serviço publico, de serviço aos outros e este é um grande problema”.

Por último, centrando-se no período presente e nos inúmeros problemas a que estamos expostos, Maria Lúcia Amaral elege o da renovação geracional. Como diz, “todas estas estruturas do Estado estão a ficar velhas e não há gente nova que as queira renovar, que as queira integrar, que queira trazer uma visão distinta, saberes e técnicas diferentes, ao mesmo tempo que é impedida a transição de boas práticas”. Ou seja, não existe ninguém a quem passar o testemunho, porque não há renovação geracional, “na medida em que ela é muito fraca e pouco atraente para ser conseguida”.

E, como remata, “não podemos ter um país mais justo, com menos pobres, com menos desperdício de pessoas, riquezas e culturas se não tivermos um Estado melhor. É o que eu posso dizer da janela do meu quarto”.