Chefes altamente tóxicos

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Laurinda Maria Alves Nunes Fernandes

Há demasiados a sofrer por terem de trabalhar com pessoas difíceis. E que não podem despedir-se porque sabem que deitam tudo a perder, que há contas para pagar, bocas para alimentar e filhos a estudar 

Um chefe que berra todo o tempo e outro que não berra, mas é um ‘control freak’ total, incapaz de delegar responsabilidades por não confiar completamente em ninguém, são igualmente erosivos para quem é obrigado a trabalhar directamente com eles. Poderíamos coleccionar tiques de chefes altamente tóxicos e escrever tratados sobre estas pessoas, mas ficaríamos sempre aquém do impacto que têm no dia a dia. Muitos deles também são altamente qualificados para o cargo e super-performativos, mas não têm a menor noção dos estragos que fazem à sua volta. Pior, acham que estão muito bem como estão.

Aos vinte anos trabalhei com um destes chefes, que a partir do meio da tarde não conseguia falar com ninguém sem ser aos berros. Se não fosse trágico, poderia até ser cómico, mas não era. Ninguém se divertia com o estilo, e vi à minha volta muitas pessoas ficarem cada dia mais desmotivadas. Algumas foram parar ao psicólogo e houve até quem tivesse necessidade de recorrer a baixa psiquiátrica. Passaram muitos anos e confesso que me esqueci desta personagem. Até voltar a ter contacto directo e indirecto com pessoas realmente tóxicas nas empresas. Falo de chefes, hoje, por terem o poder de gerir pessoas e projectos e, por isso mesmo, terem a obrigação de se formar e preparar para lidar com umas e outros. Claro que também há muita gente que envenena as relações e os ambientes de trabalho sem ter uma posição hierárquica, mas não é sobre esses que hoje me detenho.

Todos sabemos que o mundo das empresas está ferozmente competitivo e que na hierarquia das organizações há todos os tipos de pessoas. Das mais abrasivas às mais estimulantes, das mais stressadas às mais seguras, existe de tudo um pouco. O problema é ter que lidar diariamente com superiores hierárquicos insuportáveis que desvalorizam o trabalho que não foi feito por eles, que são inacessíveis ou irascíveis, mal educados, zangados e castigadores, tiranos, coléricos e imprevisíveis. Esta coisa de ‘ter mau feitio’ e ‘assumir essa condição e pronto’ não é tolerável nos dias que correm. Nada nem ninguém tem o direito de dar cabo de equipas inteiras e, muito menos, de ser injusto para com os seus colaboradores.

Passamos muito mais horas no trabalho, com pares e chefes, do que com a nossa família e amigos. Hoje em dia sou freelancer e já não vivo essa realidade há muitos anos. Não tenho chefes nem funciono numa hierarquia, mas trabalhei longas décadas dessa forma e mantenho uma ligação estreita com muitas organizações. Ou seja vejo as diferenças abissais entre ambientes bem e mal geridos. Todos conhecemos alguém vítima de um chefe stressado, azedo, hipócrita, mal formado ou disfuncional que em vez de multiplicar talentos, os enterra. Estes chefes criam relações facilmente distorcidas e situações muitas vezes perversas, pois alguns são muito manipuladores e dividem para reinar. Convocam nos outros o pior e valorizam aqueles que são ‘a voz do dono’, ‘fazem queixinhas’ ou são bajuladores. É triste, mas é real.

Há ainda uma casta de chefes silenciosos, aparentemente distantes, que até parecem impecáveis e polidos, mas nunca se aproximam, nunca param num espaço onde estão os trabalhadores, nunca olham nos olhos e por vezes também não assumem as suas responsabilidades. Chefes que não falam com as pessoas com quem trabalham, que enviam mails absurdos e por vezes em branco, apenas com o ‘subject’ e sem uma única linha, dando a entender que a pessoa a quem os mails se destinam tem que adivinhar o seu pensamento e cumprir as ordens que estão apenas na sua cabeça. São uma casta igualmente difícil, porque embora não gritem nem desvalorizem, também não valorizam e esperam dos outros uma atitude de permanente superação que eles próprios nunca chegam a reconhecer. Dão ordens, mandam cumprir e jamais reconhecem o valor, o empenho e a entrega dos que trabalham com eles. Mantém-se distantes e inacessíveis, dando a ilusão de serem verdadeiras majestades.

Há demasiadas pessoas nas empresas a sofrer por terem que trabalhar com pessoas difíceis, porque há demasiadas pessoas sem alternativas. Não podem despedir-se porque sabem que deitam tudo a perder, o desemprego é um flagelo social e há contas para pagar, bocas para alimentar e filhos ainda a estudar. Estas pessoas são provadas diariamente no seu ambiente de trabalho e nem sempre chegam ao fim do dia em bom estado. Recomeçam em cada manhã numa tentativa olímpica de manter o nervo e o foco, mas acabam desfeitas. E recomeçam no dia seguinte. E todos os dias alguma coisa se desmorona dentro delas. Vítimas de criticistas militantes que fazem exigências imperativas e dão ordens contraditórias, coleccionam marcas negativas que muitas vezes se convertem em agressividade. Ou passividade.

Não podemos mudar a personalidade do chefe tóxico, mas podemos aprender a lidar com a adversidade. E podemos chegar a induzir melhorias ou ligeiras alterações de comportamento. A personalidade mantém-se, mas o comportamento pode mudar, dizem os especialistas. Como? Seguindo algumas pistas destes mesmos especialistas. Colocando limites ao stress, por exemplo. Há gestores e chefes que vivem num registo permanente de ‘stress no pico máximo’, e é possível diluir este stress antes que ele se cole à pele. Por vezes a sabedoria passa por ser factual, não entrar em braços de ferro e não debater opiniões. Cingir-se aos factos, manter a sobriedade e a neutralidade, neutraliza um déspota ou um grande tirano. Se ainda por cima houver a possibilidade de pôr por escrito algumas questões, de modo a garantir que não se geram equívocos desnecessários, melhor ainda.

Ser bem educado, polido e afirmativo está ao alcance de qualquer um. Até dos que consideram essa atitude uma missão impossível. Se o chefe é disfuncional e injusto, se gera o caos organizacional com um registo pouco claro, vale a pena apostar em clarificar acções e intenções. Muitos chefes não são nada claros quanto às funções dos colaboradores e dão-se ao luxo de pedir tudo e esperar que façam absolutamente tudo, não lhes dando rigorosamente nada em troca, mas cabe aos colaboradores definir os limites das suas funções. Se possível sem provocações nem atitudes de confronto daquelas que encostam à parede os mais vulneráveis ( e os mais vulneráveis são sempre as vítimas, que ficam rapidamente sem margem de manobra perante opções radicais como despedimentos com justa causa ), mas com clareza e firmeza pois nenhum chefe é todo-poderoso e cada um tem as suas susceptibilidades e fragilidades. E nenhum gosta de se sentir ameaçado, pois torna-se ainda mais agressivo e inclinado a retaliar. Ou seja, em vez de resolver um problema, agravam-se os que já existem. Trata-se de guardar as devidas distâncias, de focar nos objectivos, de ser factual, de cumprir escrupulosamente aquilo que é suposto sem ter medo de não conseguir atender a todas as solicitações.

Há pessoas que têm uma arte incrível para lidar com pessoas difíceis. Já vi estas pessoas funcionar em realidades muito diversas e serem sempre capazes de responder com tranquilidade a situações inverosímeis. Se um chefe hiperactivo espera que todos sejam igualmente hiperactivos e desconfia de quem acha que trabalha menos, guardando rancor e mostrando-se desiludido, talvez a melhor saída seja lidar com realismo e dizer: “boa ideia, mas de que meios dispomos para fazer tudo o que sugere?”. Raramente um superior hierárquico reage mal quando é bem confrontado. Ou seja, quando não se sente ameaçado e percebe que há abertura às suas ideias, mas também limites para aquilo que cada um pode acrescentar à estrutura ou ao projecto.

Importa também não tomar como ofensas pessoais as agressões de pessoas tendencialmente agressivas, pois o seu estilo implica sempre alguma falta de critérios e objectividade. Dito ou escrito é infinitamente mais fácil do que vivido, bem sei. Mas volto aos exemplos concretos de pessoas muito capazes de neutralizar chefes com mau feitio ou inclinação a serem adulados pelos subordinados, e dou-me conta de que é possível criar essa distância crítica. Não ter medo, ser convincente e persuasivo, manter uma atitude firme de abertura e diálogo baixa incrivelmente o stress dos chefes tóxicos e evita muitos braços de ferro. Sempre que um superior hierárquico não percebe porque é que alguém funciona de maneira diferente da sua, ou da que ele espera, o essencial é manter a fasquia do profissionalismo elevada. Se um colaborador é irrepreensível na sua conduta, reduz ou elimina agressividades gratuitas.

A comunicação e as relações inter-pessoais nas empresas são cada vez mais exigentes e haverá sempre situações em que ‘melhor é impossível’. Ou seja, nada nem ninguém consegue alterar comportamentos agrestes e recorrentes. Sempre que esta situação se verifica e não há alternativa, ajuda pensar que mais tarde ou mais cedo as pessoas erosivas também serão vítimas da sua própria erosão. Trata-se da chamada lei do eterno retorno, fatal como o destino.

Artigo originalmente publicado no Observador.pt