Caritas in Veritate

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João César das Neves é economista, professor catedrático na Universidade Católica e Coordenador do Programa de Ética nos Negócios e Responsabilidade Social das Empresas

A encíclica Caritas in Veritate de 29 de Junho de 2009 trazia, antes mesmo de nascer, uma enorme responsabilidade. Era a primeira encíclica social do terceiro milénio da Redenção, a primeira do segundo século da Doutrina Social da Igreja. Era também a primeira encíclica social apresentada depois do Catecismo da Igreja Católica de 11 de Outubro de 1992 e do Compêndio de Doutrina Social da Igreja de 2 de Abril de 2004. Que poderia contribuir de novo Bento XVI neste enquadramento?
POR JOÃO CÉSAR DAS NEVES *

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1 – Enquadramento
Após o papa Leão XIII ter lançado a sua inovadora encíclica Rerum Novarum sobre «a condição dos operários» em 15 de Maio de1891, a reflexão pontifícia sobre os temas económico-sociais foi ganhando ímpeto. Somaram-se as encíclicas e documentos através das décadas, criando uma nova área do saber teológico, habitualmente designada por Doutrina Social da Igreja. No centenário do texto originante, João Paulo II apresentou a sua contribuição decisiva, a encíclica Centesimus Annus de 1 de Maio de 1991, que nos alimentou a reflexão nos últimos 18 anos. Além disso, num dos últimos actos do seu pontificado, esse Papa publicou em 2004 o referido Compêndio, trabalho de síntese que conduzia a doutrina ao estado adulto. Os cristãos passaram a estar dotados de um majestoso corpo de reflexão para os orientar nas suas decisões quotidianas, com uma antiguidade, profundidade e solidez  sem par em qualquer outra instituição humana.

Como contribuir para o tema desta vez? Não estavam em causa novas descobertas morais. As várias encíclicas nunca pretenderam mudar o ensinamento, mas elaborá-lo e aplicá-lo. A Revelação de Deus está plena em Jesus Cristo e a doutrina não se pode mudar nem acrescentar. «Até que passem o céu e a terra, não passará um só jota ou um só ápice da Lei, sem que tudo se cumpra.» (Mt 5, 18). Assim o que compete aos sucessivos pastores é formular os princípios de maneira adequada ao tempo, aplicando-os à novidade concreta que o mundo apresenta. S. Tomás de Aquino explicou que “Em todos os tempos nunca faltaram pessoas com o espírito da profecia, não para a declaração de qualquer nova doutrina da fé, mas para a direcção dos actos humanos” (Summa Theologiae II-II, 174, 6, 3)

Que tinha o actual profeta a dizer? Não há dúvida que as condições do mundo mudaram bastante desde 1991. A globalização e a crise financeira mereciam certamente  atenção. Mas seria isso suficiente para justificar uma encíclica papal, necessariamente mais abrangente e decisiva que outros documentos?

O que o nosso Papa nos trouxe foi um texto que ultrapassa em muito as expectativas mais ambiciosas. Pode dizer-se que na Caritas in Veritate temos um novo rosto para a doutrina social da Igreja no século XXI.

2 – Dimensão e relevância
Esse facto é visível logo na dimensão. É-nos dada desta vez a maior encíclica social de toda a história. O conjunto do texto e notas, medidos em palavras ou caracteres, constitui mais do dobro da Rerum Novarum, é 20% superior à Centesimus Annus, quase o triplo da encíclica que mais cita, a Populorum Progressio. Aliás ela é também significativamente maior que qualquer das duas encíclicas papais, a Deus caritas est de 25 de Dezembro de2005 (mais de 80% acima) e Spe salvi de 30 de Novembro de 2007 (mais de 60%). Maior que ela (ligeiramente) só a Constituição Pastoral Gaudium et Spes, do concílio Vaticano II de 7 de Dezembro de 1965.

A dimensão temática do texto agora apresentado é também muito superior às anteriores. Assumindo-se como um pronunciamento enciclopédico, à semelhança da Gaudium et spes e Centesimus Annus, mas ao contrário de praticamente todas as outras, consegue ainda incluir mais assuntos que esses dois textos de referência. Da ética empresarial (nº 40-41, 45) às migrações (62), da segurança social (25, 60) ao turismo (61), inclui ainda problemas da bioética (74), consumidores (66) e do respeito pela vida e família (15, 28). Além de se ocupar de temas tradicionais, como o emprego (63), os sindicatos (64) e as organizações internacionais (47, 67), consegue tratar os problemas das finanças (65), as questões da educação (61), dos media (73), da demografia (44), do ambiente (48-52) e as problemáticas energéticas (49). De entre os textos do Magistério, só Compêndio é mais abrangente que esta encíclica.

Apesar de muito vasta e, como veremos, espantosamente profunda, a encíclica não se coíbe de apresentar propostas específicas de política e reforma. Chega a dizer coisas polémicas como que «sente-se imenso — mesmo no meio de uma recessão igualmente mundial — a urgência de uma reforma quer da Organização das Nações Unidas quer da arquitectura económica e financeira internacional» (67). Propõe coisas como a revisão das «políticas internas de assistência e de solidariedade social», indo ao ponto de sugerir medidas particulares como «a aplicação eficaz da chamada subsidiariedade fiscal, que permitiria aos cidadãos decidirem a destinação de quotas dos seus impostos versados ao Estado» (60). Mas não são apenas os governos que obtêm-se propostas. Além de múltiplas propostas ao nível pessoal, de trabalhadores e empresários, também os sindicatos ouvem o conselho de atenderem aos trabalhadores «não inscritos, particularmente para os trabalhadores dos países em vias de desenvolvimento, onde frequentemente os direitos sociais são violados.» (64). Muitas outras intervenções directas e concretas mostram bem a atenção do Papa aos pormenores e às estratégias aplicadas.

3 – Propósito e fundamento
O propósito do texto é explícito e claro: celebrar a encíclica Populorum Progressio do papa Paulo VI da Páscoa, 26 de Março de 1967. Este texto sobre o desenvolvimento dos povos já tinha merecido uma encíclica celebrativa, a Sollicitudo Rei Socialis de João Paulo II, em 30 de Dezembro de 1987, nos vinte anos da sua publicação, uma distinção que ela partilhava apenas com a seminal Rerum Novarum. Agora, 40 anos depois (e dois de atraso), renova-se a tradição. Mas, mais do que isso, Bento XVI afirma explicitamente que «a Populorum progressio merece ser considerada como “a Rerum novarum da época contemporânea”, que ilumina o caminho da humanidade em vias de unificação.» (8).

Esta simples afirmação serve já para constituir uma taxonomia implícita da Doutrina. A partir de agora podemos dizer que existem duas linhas bem demarcadas, a que resulta do original de Leão XIII, centrado nas questões surgidas no sistema industrial, e as posteriores à intuição de Paulo VI, relativas ao dinamismo globalizante após a década de 1960.

Não é possível assinalar esta dicotomia sem acrescentar que Bento XVI tem muito cuidado em recusar partições dentro da Doutrina da Igreja: «A ligação entre a Populorum progressioe o Concílio Vaticano II não representa um corte entre o magistério social de Paulo VI e o dos Pontífices seus predecessores, visto que o Concílio constitui um aprofundamento de tal magistério na continuidade da vida da Igreja. Neste sentido, não ajudam à clareza certas subdivisões abstractas da doutrina social da Igreja, que aplicam ao ensinamento social pontifício categorias que lhe são alheias. Não existem duas tipologias de doutrina social — uma pré-conciliar e outra pós-conciliar —, diversas entre si, mas um único ensinamento, coerente e simultaneamente sempre novo. É justo evidenciar a peculiaridade de uma ou outra encíclica, do ensinamento deste ou daquele Pontífice, mas sem jamais perder de vista a coerência do corpusdoutrinal inteiro. Coerência não significa reclusão num sistema, mas sobretudo fidelidade dinâmica a uma luz recebida.» (12). Dificilmente se poderia ser mais claro e definitivo na recusa de algumas elucubrações de especialistas.

A atitude do Papa vem do facto de que «A doutrina social está construída sobre o fundamento que foi transmitido pelos Apóstolos aos Padres da Igreja e, depois, acolhido e aprofundado pelos grandes Doutores cristãos. Tal doutrina remonta, em última análise, ao Homem novo, ao “último Adão que Se tornou espírito vivificante” (1 Cor 15, 45) e é princípio da caridade que “nunca acabará” (1 Cor 13, 8)» (12). É essencial salvaguardar sempre a unidade da Revelação, sem nunca rasgar a túnica inconsútil do Crucificado.

4 – Novo fundamento
O elemento mais importante é, não tanto a abrangência dos temas e o pragmatismo e aplicabilidade das reflexões, mas a profundidade e ubiquidade do fundamento teológico de todas as afirmações. O texto é uma peça genial de teologia aplicada, e a cada passo o autor refere a origem espiritual da formulação económica.

É isso que o leva a, quando pretende formular a natureza do desenvolvimento económico, referi-la à «relação entre as Pessoas da Trindade na única Substância divina» (54). É isso que impõe a ida ao livro do Génesis para considerar os problemas ambientais (48) ou discutir o papel da técnica no progresso através da necessidade da «razão aberta à transcendência» (74). Bento XVI permanece o mais genial teólogo do seu tempo.

O sinal mais evidente dessa profundidade é o que se encontra nas poucas páginas da «Introdução», que constitui o que se pode considerar uma nova apresentação da fundamentação mais essencial da Doutrina Social da Igreja, elaborada a partir da expressão que intitula toda a encíclica. A «caridade na verdade» passa a ser, segundo Bento XVI, a própria dinâmica vital desta abordagem eclesial à economia.

Nada substitui a leitura do texto incomparável. Mas alguns traços mais marcantes podem ajudar a resumir a sua lógica. O Papa parte da constatação de que: «A caridade é a via mestra da doutrina social da Igreja» (2). Esta expressão, que constitui uma das muitas frases lapidares da encíclica, é fácil de justificar mas difícil de aplicar. O que significa a invocação da caridade no meio do fragor dos mercados? Quem pode aludir a essa virtude teologal ao referir-se aos problemas sindicais, ambientais ou financeiros? Será isto apenas uma elucubração teológica, uma figura de retórica sem qualquer conteúdo?

Fiel ao seu pragmatismo desconcertante, Bento XVI não foge à dificuldade: «Estou ciente dos desvios e esvaziamento de sentido que a caridade não cessa de enfrentar com o risco, daí resultante, de ser mal entendida, de excluí-la da vida ética e, em todo o caso, de impedir a sua correcta valorização. Nos âmbitos social, jurídico, cultural, político e económico, ou seja, nos contextos mais expostos a tal perigo, não é difícil ouvir declarar a sua irrelevância para interpretar e orientar as responsabilidades morais. Daqui a necessidade de conjugar a caridade com a verdade» (2).

Parece incrível que seja da objecção mais devastadora que se pode levantar ao seu raciocínio que o Papa parta para a fundamentação da dicotomia fundamental. É precisamente porque a caridade parece afastada, remota, irrelevante para a vida económica e social, que ela tem de ser vivida na verdade.

Os empresários, os trabalhadores, os políticos, com os pés bem assentes na terra, reclamam-se continuamente do realismo e pragmatismo que recusam aos teólogos. Todo o interesse e utilidade da Doutrina Social da Igreja dependem de encontrar uma resposta a essa crítica. Esse é o nó em que repousa o fundamento da encíclica: «A verdade há-de ser procurada, encontrada e expressa na “economia” da caridade, mas esta por sua vez há-de ser compreendida, avaliada e praticada sob a luz da verdade. Deste modo teremos não apenas prestado um serviço à caridade, iluminada pela verdade, mas também contribuído para acreditar a verdade, mostrando o seu poder de autenticação e persuasão na vida social concreta. Facto este que se deve ter bem em conta hoje, num contexto social e cultural que relativiza a verdade, aparecendo muitas vezes negligente senão mesmo refractário à mesma.» (2)

Deste modo, o novo fundamento que o Papa Ratzinger apresenta nasce precisamente da tensão mais radical que subjaz à vida económica. Ninguém como ele explicita as consequências dessa tensão, mas apontando ao mesmo tempo a saída que a doutrina lhe dá: «Pela sua estreita ligação com a verdade, a caridade pode ser reconhecida como expressão autêntica de humanidade e como elemento de importância fundamental nas relações humanas, nomeadamente de natureza pública. Só na verdade é que a caridade refulgee pode ser autenticamente vivida. A verdade é luz que dá sentido e valor à caridade. Esta luz é simultaneamente a luz da razão e a da fé, através das quais a inteligência chega à verdade natural e sobrenatural da caridade: identifica o seu significado de doação, acolhimento e comunhão. Sem verdade, a caridade cai no sentimentalismo. O amor torna-se um invólucro vazio, que se pode encher arbitrariamente. É o risco fatal do amor numa cultura sem verdade; acaba prisioneiro das emoções e opiniões contingentes dos indivíduos, uma palavra abusada e adulterada chegando a significar o oposto do que é realmente. A verdade liberta a caridade dos estrangulamentos do emotivismo, que a despoja de conteúdos relacionais e sociais, e do fideísmo, que a priva de amplitude humana e universal. (3)

A relação entre a caridade e a verdade não é apenas o mote e pano de fundo da encíclica. Após a magnificente Introdução que desenvolve o papel fundacional dessa dicotomia na Doutrina Social, a mesma relação é sucessivamente invocada como explicação e justificação para múltiplos temas e assuntos (ver nºs 10, 16,20, 30, 33-34, 36, 38, 42, 55, 67, 73, 77, 78). O desenvolvimento desses temas traz-nos pequenos e brilhantes tratados de Teologia da Criação, da Economia, da Política e da Técnica, sempre a partir da relação decisiva entre caridade e verdade.

Podemos assim passar a intitular a Doutrina Social da Igreja pela dinâmica que Bento XVI descobriu: «caridade na verdade». O que significa isto na vida prática de todos nós? Simplesmente que devemos ser santos. E para que é precisamos de um Papa, se não é para nos dizer estas coisas?

*João César das Neves é economista, professor catedrático na Universidade Católica e Coordenador do Programa de Ética nos Negócios e Responsabilidade Social das Empresas.

© 2009 – Todos os direitos reservados. Publicado em 14 de Julho de 2009