Autonomia e Reciprocidade

1926

Sou dos que entendem que o objectivo de qualquer sociedade civilizada e moderna não se deve contentar com a mera convivência pacífica entre os cidadãos, como a Ética Mínima pretende. Pelo contrário, entendo que o objectivo último de qualquer ser humano é a felicidade, como já advogava Sócrates.

O Homem tem desde sempre revelado uma clara tendência para se radicalizar e viver nos extremos. Séculos a fio, as religiões impuseram códigos morais que foram sendo interpretados, adaptados e plasmados em leis que normalmente mais não eram do que a defesa do “status quo” social e económico que protegia os interesses das classes dominantes.

Foi esta realidade histórica que levou Marx para o extremo oposto, tentando construir uma sociedade nova, baseada na solidariedade para com a classe dita dominada e no ódio para com a classe dita dominante. Foi o materialismo histórico marxista que abriu as portas à contestação não só de todos os valores do passado, mas também de todos os valores que porventura viessem a constituir-se no futuro.

Por isso, a segunda metade do século XIX, mas sobretudo todo o século XX, foram tempos de luta entre tês tipos de correntes: de um lado estiveram os que pretendiam destruir todos os valores da civilização ocidental greco-romana e judaico-cristã, afinal a ossatura do código civilizacional ocidental; do outro estiveram os que pretendiam manter intocáveis esses mesmos valores e impor a toda a Humanidade a interpretação que eles faziam dos mesmos, como aconteceu com as ditaduras da Península Ibérica; e, por último, estiveram os que pretendiam preservar o esqueleto do código axiológico ateniense, enriquecendo-o, porém, com as alterações que a experiência histórica foi aportando ao longo dos séculos.

Foi assim que, no plano político, a Europa do século XX ficou marcada pelos regimes da cortina de ferro, por um lado, por algumas ditaduras de extrema-direita, por outro, e, em último lugar, pelos regimes democráticos da Europa Ocidental e dos Estados Unidos da América.

Também no plano ético podemos falar em três perspectivas diferentes. Por um lado, temos os que procuram manter um código ético, imposto a toda a Humanidade, baseado numa moral revelada de cariz religioso, como acontece com os muçulmanos radicais e com algumas franjas cristãs igualmente radicais; por outro lado, temos os que defendem uma ética marxista sem outro critério justificativo que não seja a interpretação, necessariamente subjectiva, que cada qual dá aos interesses de classe; e, por último, temos os que defendem a necessidade de uma Ética Mínima constituída por aquele conjunto de valores sem os quais nenhuma sociedade pode sobreviver. Há também quem lhe chame Ética Cívica ou Ética da Cidadania.

Para lá destas três grandes correntes, podemos ainda falar em códigos éticos específicos, através dos quais determinados grupos sociais procuram formatar o seu comportamento ético-social, não o impondo ao resto da sociedade a não ser pela força do exemplo. Julgo que será dentro deste grupo que se insere a Associação Cristã de Empresários e Gestores (ACEGE).

Sou dos que defendem a necessidade de um núcleo mínimo de valores com carácter universal, isto é, válidos para todas as sociedades, porque sem eles nenhuma sociedade pode sobrevier. Mas, ao mesmo tempo, como cristão, entendo que o meu comportamento social e profissional deve ser pautado por um nível de maior exigência em termos éticos pelas razões que passo a expor.

Sou dos que entendem que o objectivo de qualquer sociedade civilizada e moderna não se deve contentar com a mera convivência pacífica entre os cidadãos, como a Ética Mínima pretende. Pelo contrário, entendo que o objectivo último de qualquer ser humano é a felicidade, como já advogava Sócrates. Ora, nós sabemos que nenhum ser humano consegue sozinho a sua realização e muito menos a sua felicidade.

Se, como diz Piaget, nós só construímos a nossa autonomia com a ajuda dos Outros, também temos a obrigação da reciprocidade, ou seja, o dever de ajudar os Outros a construir a sua autonomia. A autonomia e a reciprocidade são duas dimensões essenciais do conceito de pessoa. Ser pessoa significa autonomia, mas significa também reciprocidade.

Nestes termos, parece-me de toda a actualidade o preceito cristão de “amar o próximo como a nós mesmos”, logo a seguir ao amor a Deus. Daí que o código ético de um cristão e, consequentemente, de um empresário e de um gestor cristão vá muito para além da Ética Mínima. Os negócios não são um fim em si mesmos, mas apenas um instrumento ao serviço da nossa felicidade e da felicidade dos Outros.

César Urbino