Recolocar o Homem no Centro – Fabrice Hadjad

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Recolocar o Homem no Centro
Desafio Antropológico
1. O tema que, nestes dias, nos ocupa é tirado de um discurso pronunciado pelo Papa Francisco, a 2 de julho de 2014, por ocasião de um seminário internacional intitulado «Por uma economia cada vez mais inclusiva». Neste discurso, o Santo Padre apela, em primeiro lugar, a «refletir sobre a realidade, mas a refletir sem medo, a refletir com inteligência». Este apelo a olhar as coisas de frente não é circunstancial. Pertence à própria essência da fé cristã. Ter fé no Deus criador e redentor, é poder olhar a realidade da maneira mais inteligente e menos temerosa. Se Deus é o criador de todas as coisas, então, nada pode ser descartado da nossa vigilância: estar atento ao Criador, é também estar atento às suas criaturas. E, se Deus é o Redentor do homem, então nada do que possa existir de mais terrífico, de mais fútil, de mais prostituído no homem, nos deve provocar medo: crer na Boa Nova da Salvação, é também ver o mau passe da nossa perdição. Por conseguinte, reflitamos sobre a realidade, sem medo de a considerar no que ela tem de mais terrível, e com a inteligência da fé.

2. Mas qual é a realidade para a qual, de forma direta, o Papa aponta no seu discurso? É a da «cultura do desperdício». A expressão é, pelo menos, paradoxal. Em princípio, cultiva-se um campo, legumes, frutas, flores. Mas é preciso rendermo-nos à evidência: o crescimento da produção industrial foi também o crescimento do lixo. De facto, quanto mais rico se é, mais se deita fora; e, quanto mais progresso há, mais as coisas se tornam obsoletas; portanto, remetidas ao sem valor. Uma sociedade pobre e tradicional recupera cuidadosamente tanto os objetos como os pensamentos e os saberes práticos. Uma sociedade rica e progressista substitui-os por outros e lança tudo o que é antigo ao lixo. Sem dúvida que, de início, contenta-se com deitar fora coisas, mas não tarda também a deitar fora pessoas. Começa por considerar que o livro é obsoleto, relativamente a um tablet eletrónico; em seguida, acaba por achar que a velha humanidade histórica é obsoleta em relação à futura humanidade. O Santo Padre fala assim do “descartável” de crianças ao nascer, de pessoas idosas, de jovens sem emprego. Todos aqueles «não servem» à realização económica. Por isso, são excluídos. O cálculo puramente utilitário não pode senão rejeitar o que parece inútil. Mas levemos a lógica utilitária até ao seu extremo e perguntemo-nos: em que é que o homem em si mesmo é útil? Será que o nascimento de uma nova criança serve para alguma coisa? E se a criança serve para o que quer que seja, então porquê uma criança, em vez de uma máquina útil? Melhor seria um pequeno robot. — E os sentimentos? — Objetareis. Não há também em nós uma dimensão afetiva ao lado da dimensão utilitária? Sem dúvida. E para adular esta dimensão afetiva, é preferível um cão… Sim, pela utilidade e pelo bem-estar individual, um robot e um cão serão sempre mais vantajosos do que um filho. Nem um nem outro terão a crise da adolescência. Nem um nem outro correm o risco de matar o pai, ou pior: de obedecer ao Pai até à cruz.

3. Assim, a busca da utilidade e do conforto conduz à multiplicação do desperdício (visto que é preciso desembaraçarmo-nos de tudo o que está fora do programa, de tudo o que é dramático e, portanto, de tudo o que está plenamente vivo). Cristo dizia que o sábado é para o homem e não o homem para o sábado e o nosso mundo diz-nos que o homem é para o mercado e não o mercado para o homem. Daí esta advertência do Papa Francisco: « Quando o homem não está no centro, há outra coisa no centro e o homem está ao serviço dessa outra coisa. A ideia é, pois, salvar o homem para que ele volte ao centro: ao centro da sociedade, ao centro do pensamento, ao centro da reflexão. Colocar o homem, uma vez mais, no centro». A coisa parece simples. Contudo, tem matéria para nos deixar perplexos.»

I– Colocar o homem no centro?

4. Aqui, o Papa fala de «colocar o homem no centro»; noutro lado, fala de «ir para as periferias existenciais». Estas duas expressões contrárias deram, cada uma separadamente, título a colóquios organizados por entidades eclesiais. No entanto, quando as aproximamos, poderíamos ter a impressão que giramos à volta do mesmo, ou que, pelo menos, fazemos constantes idas e vindas. Vamos procurar o homem à periferia para o trazer ao centro e, uma vez no centro, ele tem de voltar à periferia. Parte de uma outra maneira, sem dúvida, mas arrisca-se, apesar de tudo, a fazer numerosas vezes o caminho de ida e volta… Talvez eu jogue um pouco excessivamente com estas expressões. Mas, se jogo assim, é por razões muito sérias. E é, em primeiro lugar, para nos pôr de sobreaviso em relação aos slogans. Mesmo se um slogan for formado, a partir de um discurso do Papa, continua a ser um slogan e não é um pensamento. Dá-nos a impressão de estar na infalibilidade pontifícia, então tal impede- nos de «refletir sobre a realidade, sem medo e com inteligência». Reflitamos um pouco mais nisto, de um outro lado, e a inteligência assinala-nos que a expressão que usamos aqui e que nos arriscamos a reduzi-la a um slogan; «recolocar o homem no centro» coloca um grande problema: parece dizer exatamente o contrário do que julgamos compreender. Com efeito, aquele que afirma que é necessário recolocar o homem, mesmo que seja no centro, supõe que o homem é alguma coisa que se pode deslocar e, portanto, que é como um pião, transportável daqui para ali, segundo o nosso capricho ou a nossa estratégia. A promoção poderia ser extraordinária, poderia ser recolocar o homem sobre o trono ou levá-lo às nuvens, mas isto quereria dizer que o homem é um pacote, uma máquina que podemos igualmente arrastar mais abaixo do que a terra. Mas não, vou talvez demasiado depressa. Escutemos melhor. O verbo é «recolocar» e não «colocar». Recolocar implica o retorno a um lugar original, e não a um lugar arbitrário. Por conseguinte, o desafio primeiro, antes de «recolocar» é de «reconhecer» o verdadeiro lugar do homem, é de se perguntar no fundo o que é o ser humano. É uma questão que, na verdade, nos fazemos poucas vezes. Mesmo nas maiores escolas, ela não se coloca. Sem dúvida, porque imaginamos que é evidente. E, pelo facto desta pretensa evidência, naquelas que chamamos as «Grandes Escolas», aprendemos a ser um tubarão das finanças, uma águia da engenharia, um carneiro do consumo, mas nunca a ser humano. Diz-se mesmo que isso não tem estritamente nenhum interesse. E não estamos completamente errados. Porque isso levaria os futuros tubarões, águias e carneiros mais longe do que a lógica dos interesses mercantis ou mundanos, naquilo que só poderia fazer mal ao montante dos negócios.

5. Além destas observações de forma, há uma outra — de fundo. Sobre o tema preciso que nos ocupa, um outro Papa (que o atual acaba de beatificar) tinha dito outra coisa diferente deste Papa. Numa audiência de 24 julho de 1968, o beato Paulo VI evoca « a autoidolatria moderna: o antropocentrismo». Mas então? O antropocentrismo, o facto de «colocar o homem no centro» não seria bom? Pouco mais de um ano antes, na encíclica Populorum Progressio, Paulo VI atacava «o humanismo fechado». Retomava uma frase de Henri de Lubac, segundo a qual «o humanismo exclusivo é um humanismo desumano»; depois citava Pascal, observando que «o homem ultrapassa infinitamente o homem». É certo que o Papa Francisco não renegaria nenhuma destas afirmações. A letra mudou, mas o espírito é o mesmo. A questão que se põe, todavia, é a de saber por que é que se operou uma tal mudança da letra, e se esta mudança não corresponderia a uma mudança de época, a qualquer coisa que estaria em processo de se fazer, e que não seria nada menos do que uma saída da modernidade, e daí uma saída do humanismo, senão mesmo da humanidade. O espírito moderno sempre se quis humanista. A Enciclopédia Larousse, no seu artigo sobre as Luzes, afirma, de maneira significativa, que «a filosofia das Luzes procede de um humanismo laico»: coloca o homem no centro do mundo, e pretende trabalhar para a sua felicidade». Colocar o homem no centro do mundo não tem aqui nada a ver com uma proposta astronómica, uma vez que a modernidade é decididamente coperniciana e já não acredita no geocentrismo. Aqui, colocar o homem no centro do mundo quer dizer rejeitar Deus – e sobretudo a Igreja – para as margens. Logo, este «humanismo antropocêntrico» opõe-se ao «tradicionalismo teocêntrico». Está na origem da fé no Progresso e na Revolução. Mas eis que, seja ela liberal ou socialista, esta fé está morta. As utopias do século XIX causaram desastres no século XX. Ninguém mais acredita verdadeiramente na salvação do humano por si mesmo, nem através da verdade do Partido, nem através da liberdade do Mercado.

6. Este colapso do humanismo antropocêntrico não é um acidente da história. Trata-se do efeito do seu desenvolvimento interno e diria mesmo do seu êxito. É precisamente porque o homem conseguiu colocar-se no centro que a sua humanidade se tornou uma escória. Esta passagem da exaltação ao aniquilamento é bastante fácil de compreender. Quando o homem se considera o soberano senhor da sua vida, faz automaticamente da sua vida um material manipulável, à medida dos seus desejos e das suas inovações. Já não há mais nada para «o repor no seu lugar». Não há mais transcendência para o alimentar e o impedir de se devorar a si mesmo. O dado da sua natureza não é mais um dom a respeitar e a cultivar, mas uma base de dados para explorar e para fazer upgrades. Desta forma, o humanismo antropocêntrico oscila por si mesmo em um pós humanismo tecnocêntrico, o qual não o vem contradizer, mas exprimir a sua verdade escondida. E porque já não quer receber-se dos pais temporais, nem mesmo do Pai Eterno, mas quer ser o produto dos seus próprios empreendimentos, torna-se, no fim de contas, escravo das suas máquinas e dos seus mercados. É o ponto mais delicado do nosso raciocínio: querendo um domínio absoluto sobre tudo, incluindo sobre a sua mão, o homem perdeu a mão. Eis o mais estranho na nossa situação: no momento exato em que o indivíduo pretendeu proclamar a sua autonomia, a economia e a tecnologia tornaram-se realidades autónomas. Como é que uma tal contradição é possível? Vós deveis ser particularmente sensíveis a isto. Esta contradição não é sem analogia com a história de Portugal. Quero falar desse momento em que Os Lusíadas se referem a Alcácer-Quibir, esse momento em que, tendo estendido o seu império pelo mundo, Portugal se deixa prender pelo seu próprio poder e, de proa da Europa inteira, passa subitamente a quinta roda da carroça. É esta brusca reviravolta que leva Fernando Pessoa a dizer na Mensagem: Porque é do português, pai de amplos mares, / Querer, poder só isto: / O inteiro mar, ou a orla vã desfeita — / O todo, ou o seu nada. Mas o que o poeta não diz, é que não é «ou…, ou…». Os dois vão a par. É porque quiseram o mar inteiro, e não uma simples terra para si, que se tornam uma orla de espuma que se desfaz. É porque quiseram tudo, e não o seu devido lugar, que já não têm mais nada. Assim perdemos o controlo do dispositivo que era suposto dar-nos o controlo de todas as coisas. Por um lado, porque este dispositivo é desproporcionado, não está à medida das nossas mãos; por outro lado, porque o desejo de controlo total procede de uma perda de confiança, e esta perda de confiança conduz-nos a uma paranoia devastadora, a uma cegueira diante da ordem da realidade.

II – Os paradoxos da dignidade humana

7. Antes de aprofundar mais e de mostrar mais precisamente porque, depois de ter criticado o antropocentrismo, devemos ter hoje um discurso sobre a necessidade de recolocar o humano no centro – sinal de uma mudança de época, e mesmo sinal de apocalipse – quereria voltar um pouco acima, e interrogar-me sobre aquilo que costumamos chamar a dignidade do homem. Porque, frequentemente, «recolocar o humano no centro» equivale a «defender a dignidade do homem». Ora, nós não podemos ignorar que este termo é ambíguo. A « dignidade» serve, muitas vezes, para legitimar a autoidolatria que acabamos de pôr em evidência: um domínio total do homem sobre a natureza, incluindo sobre a sua própria natureza, que conduz à devastação. Assim, a palavra é emblematicamente utilizada pela «Associação pelo Direito de Morrer com Dignidade», a fim de promover a eutanásia. E a retórica da dignidade pode tornar-se cúmplice da produção do desperdício, da exterminação da criança mongoloide, do velho caquético, mas também de tudo o que não pode fazer um bom consumidor, dotado desta liberdade suprema de poder escolher entre vários programas de TV ou de vários sites de encontro… Contra esta falsa interpretação da dignidade humana, temos este verso de Vitorino Nemésio extraído da sua coletânea O Verbo e a Morte: «Homem, menos que nada e mais que tudo2 .» Como é que devemos entender isto? É como uma justaposição, de tal modo que, por um lado, seríamos mais que tudo e, por outro, menos que nada? Mais que tudo pelo espírito, por exemplo, e menos que nada pelo corpo, segundo um dualismo bem conhecido. Não creio. Parece-me antes que um implica o outro. É quando nos sentimos menos que nada que nós podemos ser mais que tudo. Porque a dignidade humana não é uma dignidade de plenitude, mas uma dignidade de recetividade e de responsabilidade. Tomai uma bilha. Ela é feita para oferecer água. Enquanto está vazia, é menos do que ela própria, e muito menos do que a água do rio. Mas quando está cheia e deita água para refrescar um pouco, ela é então mais que a água, porque se torna água oferecida; torna-se mais que ela própria, porque o que realiza vai mais longe do que o espaço oco da sua terracota. Nós somos assim vasos de argila, capaz de todos os tesouros, para retomar uma expressão se S. Paulo (2 Cor 4, 7). Somos menos que nada, mas como um recetáculo que pode acolher tudo, na gratidão e na responsabilidade em relação a tudo.

8. Explico-me um pouco. Podeis colocar o homem no centro, mas a primeira coisa que ele fará, se for verdadeiramente humano, é descentrar-se. É isso que o carateriza. Enquanto o animal se põe no centro do seu ambiente, e faz tudo pela sobrevivência da sua espécie, o homem é aberto ao mundo e interessa-se por aquilo que ultrapassa a sobrevivência da sua espécie. E esta abertura faz-se pelo seu corpo e pelo seu espírito, pelo seu espírito graças ao seu corpo. O seu espírito é capaz de conhecer tudo, de convenire cum omni ente, diz S. Tomás de Aquino, quer dizer de «encontrar qualquer ser». Mas o seu próprio corpo dispõe o seu espírito para este encontro universal. É um corpo não especializado, ou «superespecializado na generalidade», como diz o paleoantropólogo André Leroi-Gourhan3 . No extremo dos nossos braços, não temos um órgão de preensão perfeitamente adaptado ao seu meio, mas esta estrela fantástica que é a mão – a mão que pode tudo manejar, porque pode tudo acolher, porque ela não é antes de mais um órgão de preensão mas de receção. De facto, a mais alta atividade da mão encontra-se menos no agarrar do que no acariciar, e a carícia não cessa de aproximar o outro esbarrando – como a onda sobre a margem – contra o seu mistério inexprimível. Esta abertura aos possíveis não é sem risco. Implica a possibilidade de uma dispersão total. Podemos apaixonar-nos pelas aventuras de uma vedeta ou pela vida sexual das moscas e esquecer a aventura da nossa própria vida sexuada. Podemos mesmo tornarnos moralmente desumanos, fixando-nos numa possibilidade (que pode aliás ser uma recusa de escolher), fechando-nos à realização dos outros e à nossa. Nisto, somos menos perfeitos do que um bacalhau, por exemplo, porque o bacalhau realiza espontaneamente o seu «ser bacalhau» — atinge até, bastante facilmente, o estado sobrenatural dito «à Gomes de Sá» — enquanto o homem, pelo facto da sua abertura ao mundo, deve realizar a sua vocação deliberadamente e pode portanto falhá-la… Há, contudo, um aspeto, pelo qual nós somos muito superiores ao bacalhau bem como a todos os outros animais, é o de que podemos baixar-nos até junto de qualquer um deles para o cuidar, o educar e para dele fazer um prato ou um poema. Nunca nenhum bacalhau se preocupou com o homem. Mas o homem pode ter o cuidado pelos bacalhaus, até propor uma moratória em relação à sua pesca, a fim de que eles se multipliquem, ou até os assumir num fado espantoso. Tal é a nossa dignidade, a de um vazio hospitaleiro ao universo.

9. Mas há ainda outra coisa, que está em ligação com o fado — com os «dias de esperança perdida ». É que a nossa dignidade revela-se especialmente na infelicidade. A tragédia grega sabia isso: o mortal derrubado, de repente, interpela os deuses, e descobre ali, no seu grito, uma verticalidade que rasga o mundo, que reclama a sua justificação para além de si mesmo. Encontra-se aqui o «menos que nada e mais que tudo» de Vitorino Nemésio. Nesta ordem de pensamento, Blaise Pascal constata que a consciência da nossa miséria é o sinal da nossa grandeza. Como sentiríamos nós o caráter miserável da nossa condição, se não fôssemos feitos para qualquer coisa de maior, se não fôssemos «reis despossuídos», «decaídos de uma natureza melhor que nos é própria», e na expectativa de uma misericórdia que permanece obscura para nós? Um cão não se lamenta por ter uma vida de cão. Mas nós fazemo-lo, e é a marca de uma nobreza em sofrimento. A evidência da nossa miséria contém esta revelação feliz que nós não nos sentiríamos tão miseráveis se a nossa origem não fosse divina.
Há aqui o que alguém, emocionado pela grande lenda portuguesa, poderia chamar um «sebastianismo racional». A mordedura da nossa decadência é o indício de que o rei não está morto, que vai voltar, que a sua perda é uma passagem para nos fazer subir de um império terrestre a um reino celeste — porque, uma vez mais, nós não experimentaríamos esta decadência, se não tivéssemos sido feitos para alguma coroa…

10. É preciso, contudo, ir mais longe do que Pascal e voltarmo-nos para um pensamento de Chesterton. A ideia mestra do grande pensador católico inglês é a gratidão; a gratidão como princípio da alegria, porque a alegria nunca é algo produzido laboriosamente, é algo recebido gratuitamente que nos ultrapassa, que vem de mais alto que nós e que nos dilata e nos leva a cantar. Ora a gratidão, explica Chesterton, supõe o sentimento da nossa indignidade. E escreve na sua Autobiografia : «A única forma de usufruir, nem que seja de uma erva má, é sentir-se indigno, mesmo de uma erva má.4» Mas eis que, em vez desse sentimento de indignidade que nos abre à ação de graças pelas menores coisas, reivindicamos uma dignidade a respeito da qual as melhores coisas parecem-nos sempre devidas, de tal modo que caímos demasiado depressa na amargura e na recriminação. «Em vez de dizer, como o velho poeta religioso: Que é o homem, Senhor, para que penses nele; o filho de um homem, para que Te dignes aperceber-Te da sua presença? (Salmo 8, 5), nós dizemos como o Major temperamental no seu clube : Esta é uma costeleta digna de um cavalheiro? Pois bem, não só desaprovo esta atitude tanto quanto a atitude pessimista [que acha que nada tem sabor nesta vida], mas penso que ela conduz mais ou menos à mesma coisa, quer dizer à perda real de todo o apetite pela costeleta ou por uma chávena de chá de dente de leão .» Eis o paradoxo mais profundo da dignidade humana. A sua recetividade e a sua responsabilidade culminam no que respeita à capacidade para a gratidão, mas esta capacidade de gratidão está intimamente ligada ao sentimento da nossa indignidade. Nada dispõe mais à alegria do que saber-se criatura, filho, herdeiro, e até mesmo sentir-se pecador. Então reconhecemos que não temos nada que não tenhamos recebido, que todos os nossos direitos de homem são, em primeiro lugar, dons de Deus e uma herança dos nossos pais e que, por nós mesmos, o que mereceríamos era o inferno. A partir daqui, fazer das tripas coração para lidar com algumas pessoas antipáticas pode aparecer como um início do paraíso — e mesmo o sofrimento pode assumir um valor positivo. Sentimo-nos menos que nada, de tal modo que a menor folhinha de erva nos toca como uma graça e abre os nossos lábios para convidar todos os que passam a louvar connosco, e este louvor dirigido ao Eterno é superior a tudo.

III – Como se coloca, hoje, a questão do homem?

11. Estas várias observações muito gerais não devem levar-nos a esquecer as nossas reflexões sobre a situação particular do nosso tempo. Falei de uma mudança no discurso pontifício, significativa de uma mudança de época. O humanismo antropocêntrico colapsou, ou antes deixou emergir a sua verdade, que é o tecnocentrismo pós humano. O humano não é mais do que um desperdício, ou antes um material para fabricar um alegado super-homem, na realidade uma espécie de super-engrenagem no grande super- dispositivo mundial. Desde então, podemos passar facilmente do desperdício à jihad, ou do desperdício ao terreno baldio, inculto. O pós-humanismo tecnocêntrico produz uma dupla reação contemporânea: a do anti-humanismo teocêntrico e a do ambientalismo infra-humano. Estas três figuras pós-modernas, com os seus três pseudoparaísos, o paraíso do cyborg, o paraíso do bonobo e o paraíso do kamikaze opõem-se entre si, mantendo-se cada um no seu erro e denunciando o do outro; mas também condizem-se mais essencialmente: estão de acordo para desprezar o humano no homem, e é por isso que elas podem acabar por se entender. O mundo tecno-liberal pode muito bem submeter-se a um islamismo amigo dos espaços verdes. Aquele que está pronto a manipular cientificamente o humano pensa que o humano não é senão um bricolage da evolução: pode, portanto, estar de acordo com aquele que acha que o homem não é em nada superior ao macaco. E aquele que quer vencer pela jihad deve pedir àqueles que dispõem do dinheiro e da tecnociência os meios para serem os mais eficazes dos terroristas suicidários. De qualquer modo, mesmo se se combatem, eles entendem-se para fazer frente contra o humano tal como se apresenta, através das gerações, da história e da cultura. E é por isso que podemos sentir a urgência, hoje, de recolocar o humano no centro.

12. Contudo, convém notar: se estas três figuras anti-humanas puderam aparecer, é também porque o humano parece ter perdido a sua legitimidade sobre a terra. Já o sugerimos: as utopias, ao mesmo tempo humanistas e progressistas, desabaram, especialmente depois das experiências totalitárias do século XX. E vários pensadores contemporâneos, particularmente Günther Anders, Hans Jonas e René Girard, sublinharam esta grande novidade do nosso tempo: o apocalipse, que era uma noção religiosa, tornou-se uma noção filosófica, mesmo empírica. Outrora, os cristãos afirmavam que o mundo ia acabar e os pagãos que os rodeavam acusavam-nos de ser ateus e cegos, porque o cosmos aparecia-lhes perpétuo e o sol divino. Hoje, dizer que o mundo vai acabar é uma vulgaridade científica: o sol extinguir-se-á daqui a alguns biliões de anos, a vida sobre a terra, daqui a algumas centenas de milhões de anos. Claro que não vamos certamente esperar tanto tempo, porque podemos muito bem acelerar as coisas com o esgotamento dos recursos naturais, o desastre climático, a guerra bacteriológica ou nuclear… Nos nossos dias, os cenários catastróficos não faltam, enquanto as grandes descrições de amanhãs que cantam faltam cada vez mais. Que é que isto quer dizer para nós? Que a presença do homem sobre a terra não está somente ameaçada, mas que já não tem legitimidade no horizonte puramente mundano. Como escreve notavelmente o filósofo francês Rémi Brague: «A questão do humanismo tomou uma orientação nova, mais profunda e mais radical. Perguntava-se até então : como podemos promover um humanismo? O que queria dizer defendê-lo contra todas as figuras do inumano. Hoje, a questão é antes: é preciso verdadeiramente promover um humanismo?»

13. Eis, pois, como se coloca a questão do humano nos nossos dias. Eis o «desafio antropológico» sem precedentes, ao qual devemos fazer face, e que é, na verdade, um desafio teologal — um formidável apelo à evangelização. E ai de nós se não anunciarmos o evangelho (1 Co 9, 16). Porque, quando a presença do homem sobre a terra já não é óbvia, é necessário encontrar-lhe uma legitimidade no céu. E quando as esperanças mundanas não podem mais sustentar um impulso na história, é necessário insuflar este impulso a partir da esperança teologal. Eu repito-o muitas vezes. O fim do mundo não é um obstáculo para o cristão. Se lhe disserem que a terra vai ser destruída amanhã, ele pode continuar a plantar árvores, a ter filhos, a ensinar-lhes a ler a Bíblia, porque ele não faz isso para o seu êxito temporal, fá-lo para a vida eterna. Os cristãos não têm necessidade de um futuro assegurado para abrir o Futuro que virá. E abrem-no a partir da fonte do tempo.

14. Contudo, trata-se de facto do anúncio do Evangelho, e não do anúncio de Deus. Já não basta dizer: «Sem Deus, o homem não sabe onde ir e não consegue mesmo compreender quem ele é». A situação que descrevemos anteriormente marca a insuficiência radical do deísmo assim como do espiritualismo para defender o humano. Em nome de Deus, podemos desprezar o homem e cair num anti-humanismo teocêntrico e, portanto, no atentado suicida para estender o império de Alá. Em nome do espírito, podemos desprezar a carne, cair no pós-humanismo tecnocrático e, portanto ,na venda do homem aos bocados para construir um androide perfeitamente integrado no desespero circundante. O único Deus que pode defender o humano contra os empreendimentos do homem «aumentado» ou do homem «submisso» é o Deus feito homem. Não super-homem, mas simplesmente homem. Não chefe religioso organizando razias, mas pobre, trabalhando com as suas mãos, pedindo de beber a uma Samaritana… É preciso compreender bem isto: se o Verbo se fez carne numa família judia, se ele mesmo se tornou carpinteiro numa época em que não havia internet nem mesmo eletricidade, significa que, para levar uma existência divina, não temos necessidade de todas as inovações fantasiadas pela tecnologia; a imortalidade, aqui em baixo, seria um impedimento para a vida eterna, o domínio total seria um entrave à entrega filial… E, se o Verbo morreu na cruz ,depois de ter pedido ao primeiro Papa para meter a espada na bainha, é que para estender o reino de Deus não temos necessidade de pegar em outras armas senão na do simples testemunho (com um pequeno chicote, apesar de tudo, para expulsar os vendilhões do Templo). Basta pouca coisa para sermos verdadeiros homens novos, quer dizer, santos. É raro, por isso, que tenhamos falta de meios. Pelo contrário, temo-los em demasia, a maior parte das vezes: é a acumulação frenética dos meios que nos leva a adiar sem cessar a hora da caridade, quando bastaria um pouco de pão e de vinho do Porto a partilhar, cantando com os pobres, para reinaugurar o Reino.

IV – O verdadeiro sentido da economia.

15. Eis, pois, a grande novidade da nossa época: vinda de Deus e animada pelo seu Espírito, a Igreja deve cada vez mais pregar o humano e o carnal… Poderia terminar aqui. Teria dito, talvez, coisas interessantes. Não teria dito o essencial. Recordais que esta expressão «recolocar o homem no centro», antes de a retomar diante do Parlamento Europeu, em Estrasburgo, o Papa Francisco tinha-a dito em Roma, no final de um almoço com economistas. Portanto, também é a questão da economia que está em jogo. Mas de que economia se trata? Da dos economistas, ou da do almoço à volta da mesa? E que quer dizer «economia»? Porque esta é uma das palavras da qual certamente se perdeu mais o sentido.
Podemos partir da linguagem corrente — ou antes da linguagem dos nossos avós. Para eles, a economia era uma virtude moral. Esta virtude correspondia a «limitar a despesa material, a diminuir o consumo de alguma coisa, aquando a sua utilização»7 . Viravamse os fatos, punham-se novas solas no calçado, remendavam-se as roupas. Esta limitação da despesa material tem um valor em si mesma: impede o desperdício. Deve sobretudo ter um valor na medida em que abre um espaço para uma despesa espiritual: consome-se menos para haver mais comunhão; temos a hospitalidade de Marta que oferece uma bela refeição ao seu hóspede, mas esta é moderada para dar lugar também à hospitalidade de Maria, que sabe escutar o seu hóspede. Esta economia é análoga à transubstanciação: não acumula, não desperdiça o pão fresco, mas come mesmo o pão duro, a fim de que o pão se transforme em palavra, em encontro, em festa de presença. No fundo, corresponde ao que S. Tomás de Aquino chama a virtude da austeridade — virtude que não tem nada da avareza nem de triste figura mas que, pelo contrário, dispõe à alegria de estar juntos. Porque a austeridade, como virtude, não exclui todos os prazeres, mas somente aqueles que são supérfluos e desordenados, e é por isso que ela se aparenta a esta afabilidade que Aristóteles chama amizade, ou ao que, em grego, se chama «eutrapelia», que quer dizer um espirito alegre8 .» Mas os economistas vieram e zombaram dos ecónomos. Disseram-nos que a economia não estava na economia. Ensinaram-nos a fazer crescer, sem fim, a despesa material e a limitar a despesa espiritual. Proibiram-nos mesmo de fabricar coisas com as nossas mãos, numa oficina adjacente à casa, a fim de comprar o pronto-a-consumir com os nossos cartões bancários, num hipermercado que se encontra a alguns minutos do escritório.

16. Contudo, o fundamento da economia não está, em primeiro lugar, na limitação da despesa material para dar lugar a uma despesa espiritual. Está na família. Oîkos, em grego significa «casa», «lar», lugar onde a família se implanta. Nómos significa «lei». A economia é pois a lei ou a ordem na família. Mas, ainda aqui, os economistas disseram que nos enganávamos e que a economia era antes de mais a riqueza das nações ou o aumento do poder de compra. De modo que, em vez de estar ao serviço das famílias, a economia dos economistas pôs as famílias ao seu serviço; deslocou-as pela exploração do trabalho, pela fascinação das mercadorias, pela dispersão dos seus membros; foi-lhe dado o nome de liberdade individual, mas é sobretudo isolamento e depois servidão do indivíduo ao sistema. Para retomar uma observação de Chesterton em Le Monde comme il ne va pas, poderíamos dizer que outrora o homem já estava perdido, mas pelo menos sabia que buscava alguma coisa, um lar onde viver com a sua mulher e filhos, um «em casa» onde acolher os seus amigos, um espaço onde pudesse realizar-se como pai e morrer saciado de dias, vendo os filhos de seus filhos e os amigos dos seus amigos. «Mas agora, aquele que, desde há muito perdera o seu caminho, perdeu também o seu endereço .» De onde vem esta errância tão extrema que já nem sequer sabe que há um destino? Vem do Homem, precisamente. Do Homem com H grande. Deste Homem genérico, que não existe, e do qual se pode fazer seja o que for. Vem da filosofia moderna que, numa espécie de angelismo vergonhoso, considerou o Homem como um ser racional, esqueceu que o homem era em primeiro lugar filho ou filha, homem ou mulher — para se tornar pai ou mãe — numa palavra – que ele era um ser familiar. Esta utilização abusiva da palavra «Homem» não só o desencarnou do seu corpo filial e sexuado mas privou-o também dos seus poderes. Porque se começou a atribuir ao Homem em geral o que não pertencia à pessoa em particular, de maneira a podermo-nos orgulhar com os feitos do Homem e não nos desolarmos com a sua servidão. Como diz Olivier Rey, numa entrevista recente que tive com ele, e que deve aparecer em breve na revista francesa Art press: «Ouve-se dizer que o homem de hoje sabe enviar sondas a Júpiter, manipular a matéria à escala do nanómetro, etc. Mas, quem é este famoso «Homem», capaz de semelhantes proezas? A técnica e o liberalismo modernos prometiam aumentar-lhe a autonomia mas, o que verdadeiramente se autonomizou, foi um processo técnico-liberal que escapa a todo o controle e que produz os seus efeitos mais espetaculares, tornando-nos cada vez mais dependentes dele para a nossa simples sobrevivência. Em troca de bens de consumo, em grande número, alienámos cada vez mais as nossas competências vitais.» Acrescento que nós as alienámos, porque nos vemos como simples indivíduos e não como filhos, herdeiros de uma tradição, de competências, de rituais familiares… Porque perdemos o sentido verdadeiro da economia.

17. Este denegrir do ser familiar é tipicamente apocalítico. Que nos diz o Apocalipse de S. João? O Dragão está diante da Mulher em trabalho de parto, e apresta-se a devorar o seu filho logo que ele nasça (Apoc 12, 4). Devorar o filho não é necessariamente destruí-lo como ser, mas destruí-lo como filho — e, portanto, lisonjeá- lo como indivíduo, livre de todos os laços, mas que já então não poderá apegar-se a todos esses laços. Repeti, muitas vezes, que estávamos na época de uma «contra anunciação». O mistério do Verbo feito carne é parodiado pelo projeto tecnicista. Na Anunciação, uma jovem mulher judia acolhe no seu seio a própria Vida, no seu Mistério, segundo uma providência que a ultrapassa; na contra anunciação do nosso tempo, queremos reconstruir uma vida em transparência, segundo planos que nos convenham. Claro, Maria concebe de maneira virginal, pelo poder do Espírito; mas, por isso, ela não aboliu a sexualidade, realizou-a. Porque, como na conceção carnal, ou mais do que na conceção carnal, ela situa-se na confiança, não no controle; ela tem necessidade de um homem, José, na partida para Belém e na fuga para o Egito; ela não tem um filho escolhido à sua medida, submisso à sua mamã ou prometido ao maior bem-estar; ela tem o Filho por excelência que lhe escapa absolutamente, foge para o Templo, é julgado como blasfemo, morre jovem numa cruz e, para cúmulo, transcendendo um pouco mais a sua mãe, ressuscita! Mas eis a questão: queremos evitar a Vida que nos expõe a esta tragédia, então, lancemo-nos a um programa que nos impõe a obsolescência ou mais simplesmente o imobilismo. O controlo afasta a confiança. O computorizado afasta o Logos. A engenharia substitui-se à geração. O nosso modelo já não está na maiêutica, mas no Mecano… E tal é, com efeito, o objetivo do Dragão: inverter a fórmula do Credo, produzir um homem novo, mas que seria criado, não gerado — nascido do século, antes de todos os pais…

18. Os pais… É preciso sublinhar a importância das genealogias na Bíblia. Muitas vezes, as leituras da missa escamoteiam-nas. Diz-se que esta sequência de nomes não nos traz nada de importante, que não nos dá nenhum conselho moral ou espiritual. Pode acontecer, contudo, que ali se encontre o ensinamento mais importante, o mais moral, o mais espiritual — aquele que nos lembra que a salvação se opera na história, com pessoas concretas; que Deus não é um oceano onde são afogadas as diferenças e as singularidades, mas que Ele é o Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacob — Deus de Fabrice, portanto, e Deus de Paula — enfim Deus de nossos pais… É um grande perigo apresentar o Natal unicamente a partir do presépio (como um lugar fora da história) e perder de vista a genealogia de Cristo em Mateus, ou esquecer que, se Maria e José estão em Belém, é porque pertencem à Casa de David. A Natividade não é só uma descida do Céu é também uma descendência da terra. Como diz o salmo (84, 12): A verdade germinará da terra, e do céu se inclinará a justiça… Há dois movimentos que se encontram. Mas o espiritualismo negligenciou demasiadas vezes a germinação, a descendência, o movimento que vem da sequência das gerações, para considerar somente um indivíduo sem origem que se salva a sós com Deus… Em vez de procurar o equilíbrio entre a razão e a filiação, entre o exame crítico e a herança assumida, a lógica teve tendência a rejeitar o genealógico. Sobre isto, as provetas estão de acordo com o Corão. No Corão, em contraste com a Bíblia, não há genealogias, não há sentido da história, porque Maomé somente faz restaurar a religião original que tinha sido deformada, falsificada pelos judeus e os cristãos. Portanto, não é só a tecnologia de hoje que rejeita o genealógico, é também o teológico de um monoteísmo abstrato, capaz de enrolar qualquer um, desprezando a sua cultura e o seu nascimento, numa jihad mundializada. A teologia cristã, pelo contrário, assume a genealogia até do próprio Deus, através do mistério da Trindade.

19. Chego à minha conclusão: para começar a sair da crise económica e antropológica atual seria necessário reencontrar, não só o sentido de Deus e do espírito, mas também e sobretudo o sentido da família e da filiação, da paternidade e da maternidade. Poderíamos quase revirar o título do célebre poema de Rudyard Kipling: «Tu serás um homem, meu filho», e visar mais longe: «Tu será um filho, meu homem» porque, sem dúvida, é isso o mais difícil, hoje como ontem, embora hoje mais do que ontem. O Antigo Testamento, com efeito, não termina com esta promessa do profeta Malaquias (3, 24): Ele conduzirá o coração dos pais aos seus filhos e coração dos filhos aos seus pais, para que não mais eu venha ferir o país com o anátema. É que estes corações sempre tiveram dificuldade em encontrar-se. A grande diferença hoje, mais uma vez, é que já nem sonhamos fazê-lo, é que mal sabemos se temos um coração. Num dos seus Poemas Ingleses, intitulado «Prayer», Pessoa, que se considerou tantas vezes inimigo da Igreja, acaba por se dirigir a «Nossa Senhora das lágrimas inúteis» com estas palavras impressionantes: Não sei como rezar / O meu coração é uma mortalha rasgada. / Vê como os meus cabelos embranquecem. / Oh ensina os meus lábios a invocar / Teu nome noite e dia / Como se esse nome fosse tudo. / A fé dos meus pais sobe / Aos meus lábios nesta hora de provação…». É espantoso. A fé dos seus pais volta-lhe aos lábios, mas numa língua estrangeira, como se fosse necessário este longo percurso do exílio e da provação para descobrir, enfim, a sua origem em toda a sua novidade inalterável.

20. Mas reencontrar o sentido da família, é reencontrar também a proximidade e a transmissão familiar. Num grande romance de Michel Houellebecq, Les Particules élémentaires, Bruno, uma das personagens principais — um divorciado — faz esta confissão significativa: Sou assalariado, sou inquilino, não tenho nada a transmitir ao meu filho. Não tenho nenhuma profissão para lhe ensinar, não sei mesmo o que ele poderá fazer mais tarde; as regras que conheci, de qualquer maneira não serão válidas para ele, ele viverá num outro universo. Aceitar a ideologia da mudança contínua é aceitar que a vida de um homem seja estritamente reduzida à sua existência individual, e que as gerações passadas e futuras não tenham maisnenhuma importância aos seus olhos. É assim que nós vivemos e, ter um filho hoje, não tem mais nenhum sentido para um homem. O sistema de produção industrial teve tendência para destruir a transmissão familiar e, portanto, a verdadeira economia. Uma mãe já não ensina à sua filha a costura, a cozinha ou o piano, porque a libertação da mulher ordena-lhe a submeter-se aos pratos cozinhados, ao pronto-a-vestir, e aos milhões de títulos que podem estar contidos num iPod. Um pai já não ensina ao filho a cultura da horta, o bricolagem ou a lectio divina, porque a libertação do homem lhe impõe ir à prateleira dos «legumes congelados», chamar o canalizador e seguir as informações na Web, enquanto o filho joga com a Playstation 4. Mas, há mais grave ainda: já não há mesmo lugar para estabelecer laços entre as gerações. A mesa familiar, que era um ponto de convergência e de transmissão dos avós para os netos, foi destituída com vantagem para o tablet. A família estilhaçou-se sob o seu próprio teto. Cada um está diante do seu écran e perderam-se estas artes da mesa que são o coração palpitante da vida de família — estas artes que vão da cultura da horta, à arte de abençoar e de dar graças, de contar histórias, de cantar em coro velhas canções…

21. Tudo o que vos digo, no fundo, é para voltar às coisas simples: reconhecer a superioridade da mesa familiar sobre o tablet, reaprender a encontrar-se à volta de uma lareira, a falar uns com os outros, a jogar em conjunto… Porque, e isso é o mais incrível… é o que fez Jesus ressuscitado: encontrou-se no meio dos seus apóstolos, comeu com eles, comentou-lhes as Escrituras, e se os enviou a pregar a todas as nações, foi começando por Jerusalém (Luc 24, 4 7), quer dizer de próximo a próximo, a partir de um lar não fechado mas irradiante. O amor ao próximo pode sem dúvida ensinar-se à distância. Mas só se pode anunciar em toda a verdade, tornando-se próximo. E, portanto, a partir de comunidades familiares, de comunidades eclesiais onde podemos, sem mentira, chamar-nos irmãos e irmãs… Mas coisas tão simples, nos nossos dias, não exigem nada menos do que o martírio. Aliás não será este talvez o verdadeiro poder económico? A palavra «economia», nos Padres da Igreja, designa a maneira como Deus realiza a salvação na história. Não é um sentido derivado, é o sentido mais profundo — que revela a própria finalidade da economia. A economia não é o acumular sem fim de bens materiais, mas o implementar um espaço de vida para as famílias. Ora, para que tendem as famílias ? Para gerar e educar filhos, mas para quê? Para que tenham sucesso no mundo? Para que vivam o máximo de tempo possível no maior bem-estar? Não, para que sejam salvos, quer dizer, para que sejam testemunhas da verdade e do amor até ao fim. Eis o que o pai pode transmitir ao seu filho e que nunca será tornado obsoleto pelo progresso tecnológico. Cristo lembra-nos: O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão (Mt 24, 35). Daí a urgência de transmitir as suas palavras e de as transmitir no quotidiano.

22. Espero que não tenha dito demasiadas asneiras e que tenham sabido tirar alguma coisa das minhas palavras. Tentei falar sob a invocação de S. Fabrício, meu santo patrono, que foi também o primeiro bispo do Porto. Disse para comigo mesmo que afinal Portugal era, talvez, a parte mais avançada da Europa. Não digo isto só no plano geográfico, a propósito desta faixa de terra que é como o rosto de todo o nosso continente voltado para o Novo Mundo. Também não o digo só por causa do Concílio de Braga, no século VI, em que, contra os maniqueus e os priscilianos, a Igreja afirmou com força a fé na Trindade e na bondade divina do casamento e da procriação dos filhos, à imagem desta mesma Trindade. Também não o digo somente por causa da admirável reconquista de todo o país aos muçulmanos entre o século X e o século XIII. Também não o digo só por causa das aparições de Fátima, em que a Santíssima Virgem mostrou como três pastorinhos podiam ser mais fortes do que a guerra e do que o inferno. Digo-o sobretudo porque, antes de todos os outros países europeus, Portugal conheceu o colapso do seu império, porque o Eterno o conduziu antes dos outros à humildade e à simplicidade, à modéstia de um reino composto por famílias sob a proteção da Sagrada Família. Ora, é a partir daqui que se realiza a renovação do mundo.

Fabrice Hadjadj