Da ética dos mínimos à “imaginação moral”

2249

É certo que as empresas podem escolher cumprir apenas aquilo a que são obrigadas. Mas também é verdade que as que optam por esta estratégia, não vão além da mediocridade. Escolher a via da “má actuação” para a garantia do lucro imediato é o caminho mais fácil, mas é através da vontade genuína de fazer (o) bem que se chega mais longe. Uma revisitação dos fundamentos da ética empresarial pela “voz experiente” de um dos maiores especialistas na área, Domènec Melé
POR
HELENA OLIVEIRA

“Os mínimos éticos são um bom começo para as empresas, mas aquelas que apenas os cumprem, não deixam de ser medíocres”. Quem o afirma é Domènec Melé, reconhecido especialista mundial em Ética Empresarial e que esteve esta semana na AESE-Business School a propósito de um seminário sobre esta temática que, por mais dissecada que seja, continua a ser objecto de mais teoria do que de prática efectiva.

Razão pela qual continua a ser necessário recordar os seus fundamentos, os caminhos que já percorreu e as falhas que continuam a subsistir na sua aplicação por parte das empresas, sejam elas de pequena ou média dimensão ou gigantes empresariais que, mais vezes do que seria desejável, continuam a ser notícia pelas más razões. O primeiro dia do seminário organizado pela AESE teve como enfoque dois grandes temas abordados pelo responsável de Ética Empresarial da IESE-Business School: a “Ética para uma boa gestão de empresas” e a “Ética na organização e no trato com as pessoas”, enquanto dimensão intrínseca de qualquer tomada de decisão na medida em que são exactamente as pessoas que por ela são afectadas. O VER assistiu às duas intervenções do Professor Melé, com quem também conversou, e tenta, no artigo que se segue, sumarizar a sua visão e alguns ensinamentos que, por mais que pareçam óbvios, não o são tanto assim.

“O risco está em reduzir a ética ao que se pode medir”

Sabemos que, de tempos a tempos, aparece um “interesse renovado” no que às questões de ética empresarial dizem respeito. Mas, em termos da sua evolução, o denominado “movimento pela ética empresarial” pode ser “compartimentado” em décadas.

Como recorda o Professor Melé, foi a pressão social, na década de 70 do século XX – e com o escândalo “Lockheed” – empresa aerospacial envolvida em casos graves de corrupção que atingiram, em simultâneo, vários países como o Japão, a Alemanha, a Itália e a Holanda, – em conjunto com a ascensão do movimento dos direitos civis e dos consumidores que “marcou” o início de um interesse mais alargado no que à ética das empresas diz respeito. Mas só nos anos 80 é que a disciplina se converteu num verdadeiro movimento de peso, ao qual correspondeu um impulso genuíno no mundo académico e empresarial, que viria a cimentar-se ainda mais ao longo da década de 90 (e inícios dos anos 2000) com os famosos escândalos da consultora Arthur Andersen, da WorldCom, da Enron, entre outros, e que deram origem a um interesse crescente dedicado às “boas práticas” e às questões éticas do governo corporativo.

Mais próximo da nossa memória – e das consequências directas que a mesma teve na vida de milhões de pessoas – enquadram-se os escândalos da banca americana e a consequente crise financeira e económica que viria a abalar o mundo tal como o conhecíamos. Todavia e em simultâneo, e ainda na década de 90, mas com expressão mais vincada a partir do início do novo século, as empresas começaram a introduzir práticas corporativas relacionadas com códigos de conduta e formação em ética empresarial, ao mesmo tempo que os denominados “valores” foram ganhando notoriedade renovada com a ascensão da chamada responsabilidade social das empresas e, numa óptica mais alargada, com os movimentos de sustentabilidade, numa visão mais holística da noção “multi-stakeholders” aos quais as organizações devem prestar atenção – e contas, apesar de, em muitas ocasiões, a questão continuar a ser tratada mais como “retórica do que como gramática”,como sublinha o Professor.

Como declarou ao VER, são já “muitas as empresas que começam a perceber que a actividade económica tem uma dimensão ética, e por isso, compreendem que um comportamento ético e responsável não é alheio aos resultados, na medida em que produz aceitação social e gera confiança.” Adicionalmente, “estes e outros factores influenciam o desempenho económico da empresa a médio e longo prazo”. Todavia, Melé afirmou ainda que “as empresas que seguem uma tendência economicista podem aceitar cumprir os mínimos éticos ou por imposição legal ou por pressão da opinião pública, na medida que as exigências de ética aumentam com a percepção da corrupção”. Questionado sobre se ainda é necessário que existam escândalos empresariais de grande envergadura para que surja um interesse renovado no que à (falta de) ética empresarial diz respeito, o especialista asseverou que “historicamente, os escândalos têm tido a sua influência, sim, mas também já existem muitas empresas que se esforçam por ter uma boa reputação ou que o fazem devido a um elevado sentido de responsabilidade”.

Na actualidade, e como sabemos, a tendência para integrar a ética com a eficiência da empresa é fruto de um desenvolvimento “dos tempos”. Vivemos na era em que a gestão é muito mais baseada na missão da empresa, a qual tem de ser congruente também com o bem comum da sociedade e de todos os seus stakeholders. Para além das questões de reputação e boa imagem (v.caixa), as empresas sabem que são cada vez mais escrutinadas e que têm de obedecer a regras e normas, que visam o seu bom comportamento. Mas será que os mecanismos que, entretanto, se popularizaram, são suficientes para as manter na “linha”? Ao VER, Domènec Melé afirmou não estar completamente seguro sobre a sua eficácia, apesar de considerar que “os rankings, as certificações e os relatórios podem ajudar a melhorar certos aspectos, aos quais não se dava a devida atenção anteriormente”. Todavia, afiança, “o risco está em reduzir a ética ao que se pode medir e a verdade é que, antes ou agora, sempre existiram empresas que são éticas por convicção e que não precisam de nenhum código ou de escrutínio externo para assim se manterem”.

Do cumprimento dos mínimos à busca pela excelência

Como tudo na vida, também o cumprimento da ética pode ser “hierarquizado”, sendo uma opção empresarial “cumprir aquilo a que sou obrigado” – o que já é um princípio aceitável, ou ir mais longe na denominada “qualidade da ética”. Melé recordou de que massa é feito o planeamento de mínimos (ou o mero compliance): cumprimento de contratos legítimos, respeitar as pessoas e os seus direitos, não explorar, maltratar ou manipular, não subornar ou aceitar subornos, actuar com transparência, evitar conflitos de interesse, não fugir ao pagamento de impostos, não abusar do poder em proveito próprio, entre outras regras “básicas”. Ou seja, e em termos de implicações para as empresas que não têm pretensões de ir para além da mediocridade, este planeamento não exige mais do que o cumprimento dos princípios e normas, de se basearem em códigos de conduta e em comités ou, na prática, de se apostar numa formação que é baseada apenas no evitar daquilo que é proibido e na mera resolução de problemas.

A boa notícia é que existem já muitas empresas que investiram num aumento “qualitativo” dos seus níveis de ética. De acordo com a apresentação de Domènec Melé, as empresas que buscam a excelência ética têm as seguintes características: actuam no mercado com uma atitude de serviço, que visa assegurar as necessidades dos demais e a difícil tarefa de se “colocar no lugar do outro”; ampliam a sua lógica de “intercâmbio”(dar para receber algo em troca), substituindo-a pela lógica da gratuitidade (dar sem esperar nada em troca); procuram a formação, a participação e o desenvolvimento dos demais; desenham organizações que respeitam a iniciativa e a responsabilidade; desenvolvem a denominada “sabedoria prática” e as demais virtudes para decidir o que é melhor e não somente o que lhes é mais útil e economicamente favorável e promovem culturas éticas com especial enfoque na justiça, na verdade, na ajuda reciproca e na cooperação com vista a alcançar o bem para toda a empresa.

Questionado pelo VER no que respeita ao “panorama geral” do ambiente empresarial da actualidade, no que respeita a este desenvolvimento “para além dos mínimos” e, sobretudo, no que acontece nas multinacionais, Melé responde: “Algumas sim, outras nem tanto. O problema reside exactamente na sua condição de ‘multinacional’ e de estarem submetidas, consequentemente, a diversas legislações. Algumas empresas multinacionais foram objecto de muitas críticas devido a abusos cometidos contra populações indígenas, por falta de sensibilidade no que respeita ao meio ambiente ou por ausência de respeito pelos direitos humanos”, acrescentando ainda que a “Organização das Nações Unidas tem tomado algumas medidas sobre estes casos, ainda que sempre ao nível de recomendações e de adesões/participações voluntárias”, o mesmo acontecendo com “algumas associações empresariais que acordaram certas práticas éticas”. Por último, o professor sublinhou também “que existem empresas multinacionais que fazem realmente as coisas bem e aplicam, de forma regular, as normas éticas”.

Mas e em suma, o que significa este “caminhar para além dos mínimos”? De acordo com o Professor, este planeamento que busca uma maior qualidade ética inclui os mesmos princípios e normas “comuns”, mas tem como objectivo chegar à “excelência”, sendo esta concretizada em valores e virtudes desejadas. E, de importância crucial, é o (bom) exemplo dos líderes e dos demais executivos de topo, que devem evitar obviamente não só o que é proibido, mas procurar fazer o melhor possível, promovendo também melhorias contínuas na organização.

Ao VER e tomando como exemplo recente o escândalo da Volkswagen – na medida em que esta é uma multinacional com uma cultura de ética alegadamente bem “desenvolvida” – Domènec Melé afirmou que apesar de não se conhecerem ainda bem as causas que levaram o gigante automóvel a incorrer na fraude das emissões, “é possível que a pressão para colocar rapidamente no mercado um modelo, em conjunto com dificuldades técnicas, tenha induzido alguns engenheiros a adoptar o mecanismo que, de modo imediato, causou a fraude”, ao mesmo tempo que a mesma pressão os levou a “adoptar a solução mais fácil, ainda que enganosa”. Mas, como também questionou o VER, será que no caso particular da manipulação dos testes de emissões poluentes, o que falhou foi uma boa integração da ética individual com a ética institucional? “Com uma forte cultura ética, bem arreigada, e com algum sistema eficaz de denúncia interna, [a fraude] poderia ter sido evitada. Mas desde que a ‘causa’ não tenha tido origem no “topo” da organização. Pode sempre existir um choque entre a consciência moral de algumas pessoas e a pressão para se alcançar determinadas metas”, acrescentou ainda.

No mundo competitivo em que nos movemos, é natural que os dilemas éticos abundem. E é na complexa escolha entre o que é ético e o que é lucrativo que muitas empresas acabam por falhar, seja pela pressão do tempo, dos resultados ou por mera ambição. Mas, e como afirmou Melé ao VER, existe sempre a possibilidade de se procurarem soluções alternativas – e criativas – e é nesse campo que as empresas podem marcar a diferença, através da motivação para se alcançar a excelência: “a imaginação moral procura soluções que vão além do dilema ‘ou actuamos mal e ganhamos dinheiro’ ou ‘actuamos bem e aumentamos os custos’. Em caso de conflito, as exigências éticas têm de ser prioritárias face aos custos, ainda mais quando estão em risco vidas humanas. Mas com imaginação moral (o desejo de agir bem) pode-se encontrar, muitas vezes, soluções éticas e simultaneamente rentáveis. A motivação ética consiste em procurar estas soluções”.

Nesta sua primeira intervenção, Domènec Melé procurou ainda fundamentar a ética empresarial, fazendo uma rápida resenha histórica da sua evolução: da Antiguidade Clássica, e enquanto expoentes do seu “entendimento”, Sócrates, Platão e Aristóteles concentraram-se nas “virtudes” e na premissa de que “a ética busca a excelência humana”; com a chegada da Idade Média e, em particular, pelas mãos de São Tomás de Aquino, nela é incluída, para além das virtudes, a lei moral; com o advento da modernidade, começam a desenvolver-se princípios e normas para determinar que acções são eticamente aceitáveis ou não, com Immanuel Kant a contribuir para esta determinação; na pós-modernidade, onde se inclui já o século XX, a ética é “definida” por um conjunto de impulsos morais e de valores, enfatizando-se situações particulares e a responsabilidade de acordo com situações concretas e através de procedimentos que visam chegar a um consenso. E, na era actual em que vivemos, chegámos a uma visão integral da ética, composta por um conjunto de virtudes e normas, mas também, e essencialmente, de valores (estes mais consentâneos com o respeito pelas pessoas e tendo como “farol” a máxima “trata os outros como gostarias que te tratassem a ti”).

É, aliás, o enfoque na pessoa que assume “prioridade” – tanto no que diz respeito à dimensão individual, como social – na medida em que é a dignidade humana, os direitos humanos, a benevolência e o bem comum das comunidades que promove o desenvolvimento … humano.

Assim e para o especialista em ética empresarial, as empresas devem assumir como centro da sua ética as pessoas, ao mesmo tempo que devem procurar uma integração consistente entre bens, princípios éticos e virtudes. O mesmo acontece na tomada de decisão, da qual a ética é uma dimensão intrínseca, exactamente porque esta afecta as pessoas e, extremamente importante, pelo valor determinante que tem o carácter de um bom líder, o qual se deve pautar pela honradez, generosidade, justiça e lealdade: é que e como sabemos, a decisão, que inclui a moralidade dos meios e dos fins, é da responsabilidade de quem a toma, bem como o são as suas consequências.

A cultura da indiferença é ainda uma prática comum nas empresas

Na sua segunda intervenção – exactamente dedicada à “ética na organização e ao trato das pessoas”, Melé definiu em primeiro lugar, o que é “a empresa”, de uma forma a que não estamos propriamente habituados. Como afirmou, a “empresa tenta adaptar-se ao ambiente que a rodeia mas, por vezes, e por via da criatividade e da inovação, sofre também mutações. Ora, a empresa é muito mais do que um organismo. A empresa pode ser reduzida a um mecanismo ou sistema produtivo para criar riqueza, mas é muito mais do que um mecanismo. A empresa estabelece contratos, mas não é apenas um conjunto de contratos. Na empresa coexistem interesses diversos, mas não é apenas um centro de coordenação de interesses”.

Ou, por outras palavras, a empresa é muito mais do que tudo isto. Para o Professor, uma “aproximação realista leva a que a empresa seja vista como uma associação de pessoas, com uma unidade duradoura, formada por vínculos distintos (contratuais, afectivos, morais) e que está envolvida em prol de uma acção comum, para atingir um propósito partilhado, mesmo que as motivações individuais daqueles que formam essa comunidade possam ser mais ou menos diversificadas. Ou, por fim, a empresa é uma comunidade humana e, como tal, formada por pessoas”.

Tal como fez quando tentou “resumir” a evolução dos fundamentos éticos empresariais, Melé também recordou a “evolução” da visão das pessoas na empresa, tema “antigo”, como sublinhou, mas que não impede que se mantenha actual: desde a mão-de-obra, em que os obreiros eram encarados como “auxiliares das máquinas”, ao conceito de “factor produtivo” como contributo para o trabalho e encarado como “custos laborais”, até à expressão “recursos humanos” cunhada por Peter Drucker – e que se continua a manter “actual” em muitas empresas e que leva em linha de conta o contributo destes para os lucros. Na actualidade, é – ou devia ser – a visão ético-humanista a imperar e que considera as pessoas exactamente como… pessoas (ou colaboradores).

Porque a prosa já vai longa e porque não é possível escrever tudo quanto o especialista em ética empresarial “ensinou”, o VER não quer, todavia, deixar de partilhar uma “hierarquização do trato” sublinhada por Melé (realizada no âmbito de uma sua investigação recente) na segunda sessão do seminário em causa. Tendo como mote o facto de “a qualidade humana” fazer – ou dever fazer – parte da cultura da empresa, o Professor chegou a seis níveis de “trato”, aqui destacados:

  • Nível 1 – Exploração, o tratamento conferido às pessoas é pautado pela opressão e pelo despotismo;
  • Nível 2 – Maus tratos, em que as ofensas e as injúrias são frequentes;
  • Nível 3 – Indiferença, mediante a qual as pessoas são tratadas como meros recursos;
  • Nível 4 – Respeito, em que os colaboradores são tratados de forma justa e atenciosa;
  • Nível 5 – Cuidado, em que a oferta de ajuda a problemas “alheios” é uma realidade;
  • Nível 6 – Desenvolvimento, no qual a empresa tem como objectivo favorecer o progresso pessoal de todos os seus colaboradores.

Assim, a pergunta do VER surge como inevitável. No seguimento da frase “as coisas têm preço, as pessoas têm dignidade”, proferida por Kant e escolhida por Melé para introduzir estes níveis diversos de cuidado (ou falta dele) para com as pessoas, e de acordo com a sua vasta experiência, questionámo-lo acerca do “nível mais comum” praticado pela generalidade das empresas. “Creio que já existem poucas empresas em que abundem os maus tratos aos colaboradores. Todavia, existem muitas outras onde a indiferença subsiste. E esta ocorre quando as pessoas são vistas somente como recursos produtivos e nada mais. Em muitas outras, já podemos testemunhar a existência de um trato respeitoso e, em alguns casos e inclusivamente, aquelas que prestam atenção aos problemas dos empregados e aos seus interesses legítimos. Mas poucas são ainda as que se preocupam verdadeiramente com o facto de os empregados poderem desenvolver-se trabalhando na empresa”, respondeu.

Por último, e porque tal como o último nível deverá ser o almejado, uma particular atenção também para a noção de subsidiariedade, que é também um dos fins últimos que a empresa deverá pretender atingir. Na verdade, de que se trata? “É conferir iniciativa e responsabilidade, com capacidade de decisão, contando com o apoio oportuno e tendo sempre como visão o bem da empresa no seu conjunto. Com este sentido de responsabilidade, respeita-se a liberdade e facilita-se um maior desenvolvimento das pessoas, ao mesmo tempo que se utilizam melhor os seus talentos”, rematou.


Nove resultados sem preço dos efeitos de uma boa política de ética empresarial

  1. Humaniza a empresa;
  2. Gera confiança;
  3. Diminui os custos de transacção;
  4. Promove a lealdade;
  5. Favorece a aceitação social;
  6. Reforça a preocupação pelos resultados;
  7. Fomenta a imaginação moral;
  8. Reforça hábitos morais;
  9. Desenvolve culturas organizacionais éticas.28