“A quem muito foi dado, muito será exigido”

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Ao longo dos últimos seis anos, João Pedro Tavares, vice-presidente da Accenture, e João Ribeiro da Costa, fundador da eChiron, têm vindo a trilhar um caminho comum, procurando conciliar os valores cristãos com as exigências da sua vida profissional. “A Vocação do Líder Empresarial” foi tema de reflexão por parte de ambos, convidados a partilhar os novos caminhos propostos por este documento com a audiência, no contexto da reunião do Cardeal Peter Turkson com os Grupos Cristo na Empresa
POR MÁRIA POMBO

No âmbito das reuniões realizadas pelos Grupos Cristo na Empresa (CnE) – nascidos da necessidade sentida por um conjunto de gestores católicos, associados da ACEGE, de aprofundar e concretizar os valores e critérios propostos pela Doutrina Social da Igreja no contexto das suas vidas profissionais (v. caixa) – o documento “A Vocação do Líder Empresarial” tem vindo a ser tema de reflexão nas reuniões mensais que juntam gestores seniores e juniores num ambiente de partilha e aprofundamento da sua missão cristã no interior das empresas em que trabalham.

Assim, João Pedro Tavares, vice-presidente da consultora Accenture, e João Ribeiro da Costa, fundador e administrador da eChiron, ambos membros do Grupo fundador dos CnE, foram desafiados a partilhar, na apresentação do documento em causa, o seu testemunho e reflexão sobre as principais linhas orientadoras deste documento.

Considerando o documento uma ferramenta útil e inovadora, ambos concordam que o mesmo permite uma reflexão actual sobre a conciliação da missão católica com as exigências da gestão de uma empresa.

Uma nova luz no compromisso e visão dos gestores cristãos  
Na sua apresentação, João Pedro Tavares começou por recordar a reunião “inaugural” destes grupos CnE, em que se juntaram vários gestores e empresários cristãos, “não apenas para meditar”, mas sim porque partilhavam a vontade de “viver o Evangelho” no seu contexto profissional.

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© Arlindo Homem
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“A primeira coisa que percebi foi que tínhamos desafios empresariais comuns, mas também as mesmas limitações sobre como gerir as nossas empresas e seguir, em simultâneo, os valores do Evangelho”, afirmou. Todavia, rapidamente tomaram consciência de que a missão para a qual se sentiam chamados não se limitava à vida empresarial – indo, ao invés, muito além desta esfera – estando presente não só no interior das empresas, mas também na família e nas comunidades onde estavam inseridos. “A nossa carreira profissional não é um fim nem um objectivo isolado, mas sim uma parte dessa missão”, assegura o vice-presidente da Accenture.

O trabalho desenvolvido em grupo permitiu a estes líderes perceberem que o reconhecimento dos seus pecados e limitações, mas também dos seus talentos e responsabilidades, abriam ‘espaço’ para “o seu crescimento na Graça, Amor e Serviço”, enquanto profissionais e líderes.

Para ilustrar esta interpelação, João Pedro Tavares recorre à história bíblica de Zaqueu, o cobrador de impostos, que subiu a um sicómoro para ver Jesus. Verdadeiramente,  buscava a sua própria identidade. Ou seja, “como podemos abrir os nossos corações, no nosso contexto profissional, à presença de Jesus, tal como fez Zaqueu?”.

Esta dúvida dá origem a um outro conjunto de questões, como adiantou João Pedro Tavares: a consistência cristã na vida profissional, a forma como se tomam decisões – por vezes, duras – e o tipo de critérios que se aplicam ao trabalho e à gestão no dia-a-dia: “como conciliar a vida pessoal com os desafios profissionais?”; “de que forma cuidamos das nossas famílias?”; “como estamos a conduzir os processos de discernimento nas nossas empresas?”, foram algumas das interpelações citadas pelo vice-presidente da Accenture.

Todavia, o gestor cedo tomou consciência de que “o grande desafio seria, na empresa, agir como Cristo teria agido”. Se este cenário fosse possível, “Jesus seria, não um colega, mas um CEO, que nós seguiríamos enquanto seus discípulos”, declara, acrescentando que o objectivo “último” – a partir da consistência com os critérios, valores e princípios por Ele professados – é sempre o de uma maior humanização das empresas e vidas profissionais.

João Pedro Tavares sublinhou igualmente que têm sido vários os documentos – de gestão e da Igreja – que, ao longo destes anos, têm servido de apoio à reflexão e à meditação deste grupo, de que é exemplo a encíclica “Caritas in Veritate” de Bento XVI. Todos eles são documentos que ajudam os empresários católicos a perceber que a criação de valor nas empresas não serve apenas um propósito financeiro, mas inclui também valores sociais e humanos. “A distribuição de valor constitui ainda um grande desafio que vai muito para além das nossas empresas”, alerta o gestor.

Desta forma, esta “ Vocação do Líder Empresarial”, a qual tem vindo a ser trabalhada no grupo CnE de João Pedro Tavares e de João Ribeiro da Costa há cerca de um ano, tem-se revelado muito importante, na medida em que demonstra “o quão diferentes são os sinais que fazem parte dos planos de Deus”, e contribuído igualmente para “conferir uma nova luz ao compromisso e visão” seguidos pelos membros dos Grupos CnE.

João Pedro Tavares terminou a sua apresentação, passando o “testemunho” a João Ribeiro da Costa, na medida em que ambos pertencem ao mesmo Grupo CnE que tem vindo a reflectir sobre os ensinamentos e novos caminhos propostos por esta “vocação” dos líderes empresariais.

“Quando as pessoas trabalham, não apenas fazem mais, como também se tornam mais”
“A primeira vez que li o documento ‘A Vocação do Líder Empresarial’, senti que estava a visitar uma paisagem que me era familiar, uma paisagem repleta de uma profunda paz e alegria”. Foi assim que João Ribeiro da Costa, administrador da eChiron iniciou o seu testemunho perante a plateia atenta de gestores e empresários cristãos.

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© Arlindo Homem
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Sublinhando que não existem muitos documentos católicos dedicados a empreendedores, gestores e líderes empresariais, enquanto um grupo “em particular”, sendo este uma “rara e feliz excepção”, o fundador da eChiron sublinhou que o documento em causa apresenta algumas ideias já abordadas e discutidas nos CnE, abrindo, contudo, caminho a novas reflexões e visões, o que lhe confere um carácter inovador. O gestor sublinha ainda a importância do anexo “Uma lista de questões para o discernimento do líder empresarial”.

O Documento relembra logo no seu ponto 7 a passagem do Evangelho de Lucas, “A quem muito foi dado, muito será exigido; e a quem muito foi confiado, muito será pedido” (Lc 12,48), aplicando-a concretamente aos empresários e gestores, deixando claro que “aos gestores foram dados muitos recursos, sendo que o Senhor lhes pede que realizem feitos extraordinários”. Deste modo os empresários, ao cumprirem a sua vocação e missão, têm um “papel especial na Criação”, o que João Ribeiro da Costa reconhece ser uma “óptima notícia”.

Este papel é clarificado no tópico 87 [do documento]: “os empreendedores, os gestores e todos os que trabalham no sector empresarial, deveriam ser encorajados a reconhecer o seu trabalho como uma autêntica vocação e a responder ao chamamento de Deus com o mesmo espírito dos seus verdadeiros discípulos”.

João Ribeiro da Costa enumerou também várias temáticas contidas no documento que se identificam com as propostas de reflexão que têm surgido no caminho dos grupos CnE, e com as quais muitos gestores e empresários são confrontados no exercício da sua actividade profissional. A título de exemplo, temas como “uma vida dividida” – que se revela, em muitos casos, uma dificuldade para os profissionais que não conseguem conciliar a fé com as exigências profissionais – ou os “discernimentos” – devendo estes ser “sábios e enraizados na realidade e na verdade” – , em articulação com a definição de “trabalho digno” – a qual implica que “a grandeza do trabalho humano não só conduza a produtos e serviços melhores, mas também ao desenvolvimento dos nossos próprios colaboradores”. Ou, por outras palavras, a noção de que “quando as pessoas trabalham, não apenas fazem mais, como também se tornam mais”. São precisamente estes princípios que fazem João Ribeiro da Costa recuar no tempo e lembrar-se do tempo valioso que os elementos dos grupos partilham nas suas reuniões, considerando-o “fundamental” na sua vida.

O fundador da eChiron reconhece igualmente o documento como uma “novidade”, na medida em que introduz áreas não debatidas ainda no interior dos CnE. A título de exemplo, Ribeiro da Costa enumera a clarificação básica de “bens e serviços úteis”, o estabelecimento de uma linha clara entre “o que os líderes católicos devem e não devem fazer”, em conjunto com “a importância de receber”para um líder empresarial, a qual está “intimamente ligada à humildade e ao espírito de pobreza, tão difíceis de instanciar no nosso ambiente particular”.

O anexo deste documento contém igualmente uma lista de questões, “numa abordagem eficiente”, que auxilia os líderes empresariais a reflectir sobre a sua vida profissional e a relação desta com a fé. Ribeiro da Costa dá ênfase à sétima questão [do anexo], sobre a partilha do caminho espiritual com outros empresários cristãos, referindo que “estes seis anos provam que a partilha do caminho com os nossos pares é uma forma sólida de descobrir a vontade de Deus”, sendo esta um grande auxílio na resolução dos “problemas práticos do nosso dia-a-dia”.

No momento em que foi iniciada a reflexão sobre este documento, recorda João Ribeiro da Costa, foi proposto um exercício ao seu grupo CnE: se lhes fosse pedido para acrescentar um contributo ao mesmo, qual seria? Para o líder da eChiron, o ponto em “falta” seria “inteiramente dedicado à importância da oração na vida de um empresário cristão”.

João Ribeiro da Costa terminou o seu testemunho citando D. Manuel Clemente, por ocasião da Abertura Anual dos grupos Cristo na Empresa: “para ter a unidade da vida, o empresário católico deve, antes de mais, manter a sua unidade com Deus” – reforçando a mensagem veiculada por Bento XVI na sua primeira encíclica.

Inquietação, reflexão e acção
Os grupos Cristo na Empresa (CnE) nasceram em 2008 como resultado da necessidade sentida por vários empresários e gestores, associados da ACEGE, de conciliarem a sua fé com os desafios da vida profissional. O objectivo principal era aprofundar e concretizar os valores e critérios propostos pela Doutrina Social da Igreja influenciando, de forma positiva, a vida nas empresas a que pertenciam. Afinal, esta é a grande proposta que a ACEGE faz a cada associado.O nome Cristo na Empresa (CnE) surge por sugestão do seu Assistente espiritual, Pe. Diogo Barata, tendo sido imediatamente aceite por todos os membros do grupo. Da mesma forma que certifica que a principal missão dos membros dos grupos é católica, revela-se um desafio que os “obriga” a terem presentes os valores da Igreja na sua actividade profissional, dando-lhes a certeza de que são estes os mesmos valores que promovem a dignidade e o Bem Comum.Enquanto promotora desta iniciativa, a Associação Cristã de Empresários e Gestores (ACEGE) procura potenciar a ligação entre os diversos grupos e criar o espaço necessário para diversas acções conjuntas. No entanto, cada um dos CnE deve percorrer o seu caminho, de acordo com as características específicas dos seus elementos.

As temáticas são propostas no início do ano, por cada grupo, devendo cada reunião ser preparada e conduzida por dois dos seus elementos. As reuniões têm dois momentos de oração (no início e no final), um momento de apresentação do tema a ser debatido, com espaço para leitura de textos e a sua posterior reflexão.

Os temas abordados relacionam-se com a aplicação da Doutrina Social da Igreja na vida empresarial, abrindo caminho a temáticas tão dispares como a relação entre a vida familiar e a vida profissional, ou entre a fé e a gestão de uma empresa, sem esquecer dimensões mais abrangentes como a Ética, o Bem Comum e a Justiça.

As reuniões são mensais e contam já com mais de duas centenas de membros.